«Soçobrara
o sonho imperial napoleónico. À guerra sucedera a diplomacia, reabilitada da
mera expressão de compromissos militares. Abria-se a era dos grandes Congressos,
inaugurada no de Viena em 1814.
Mal refeita ainda da ocupação francesa, a Península Ibérica procura despertar
para um futuro incerto. Aquela mesma Espanha que proclamara a Constituição
de Cadiz (1812) acolhe festivamente a reentronização de Fernando VII.
Contradição aparente, resultará sobretudo da força de um atavismo, que os
ventos da mudança constitucionalista não haviam logrado apagar.
De
facto, dois anos apenas não foram suficientes, para alterar mentalidades
arreigadas em seculares princípios. É de crer que só a ausência do rei, exilado
em França, dera força e oportunidade à proclamação constitucional. O labor das
constituintes, embora intenso, revelou-se muito mais teórico do que prático.
Durante a sua efémera existência promulgou-se copiosa legislação. Sem embargo,
os resultados ficaram muito aquém das expectativas. Concretamente, pouco ou
nada se abalara das estruturas políticas e socio-económicas do anterior regime.
Não se abolira nenhum convento nem se derrogara qualquer lei feudal, sem que logo
se levantassem clamores generalizados. À oposição actuante dos privilegiados,
não se viu contrapor a força de uma vontade popular. A massa permanecia inerme
e compreensivelmente insensível às promessas de mudança. Reacção lógica, aliás,
de quem não vislumbrava benefícios imediatos. Tudo ficara como dantes. A
Constituição, só por si, seria incapaz de solucionar os graves
condicionalismos existentes. E os problemas subsistiram, muito para além dos
generosos projectos gizados em Cadiz.
Herdeiros
de uma situação calamitosa, raiando o colapso financeiro nacional, as
constituintes não lhe acharam adequada saída. Pelo contrário. A breve trecho
reduzem-se a uma minoria inoperante, acossada e receosa. E o entusiasmo reformador
inicial, transformar-se-á em cega intolerância, face a quantos não perfilhassem
dos seus ideais. Sucintamente, tal é o quadro que servirá de cenário ao
regresso triunfante de Fernando VII (o monarca regressa do seu exílio de
Valançay a 22 de Março de 1814; sobre
a sua entrada triunfal em Espanha veja-se a descrição no Manual de Historia de
España, Barcelona, 1959). De imediato,
será restaurado, sem restrições, o poder autocrático da realeza bourbónica. Um
novo período toma vulto pronto a esmagar quaisquer veleidades liberalizantes. A
4 de Maio de 1814, declara-se a Constituição
nula e sem nenhum efeito. O poder central constituinte, reduzido à simples
expressão de espectador, não opõe resistência. Como que a censurar a vitória
consentida, a governação régia fará alarde do seu ilimitado despotismo. O
anterior regime ressurge fortalecido e incondicional. As palavras de ordem
passam a ser perseguição e vingança. Olvidam-se as promessas feitas pelo
monarca no exílio de Valançay. Multiplicam-se as sentenças condenando à prisão
ou ao desterro. O terror reinará para que Fernando VII governe.
Naturalmente,
todo o aparelho do Estado torna às mãos dos absolutistas. Os radicais sobraçam
os Ministérios mais importantes. E a corte depura-se dos elementos desafectos,
em. favor de um grupo cada vez mais restrito e fechado. É a célebre camarilha desfrutando de tal
valimento, que até os próprios Ministros se lhe sujeitam. O nepotismo e a
intriga pontificam. A influência palaciana de que goza e o ascendente exercido sobre
o rei, explicam a agitação constante da época. Tão pronto se concedem honras
como se decretam demissões. Em apenas seis anos sucedem-se trinta ministros nas
respectivas pastas. Politicamente, assim viverá a Espanha de Fernando VII, até
ao movimento liberal de 1 de Janeiro de 1820...
Pelo
lado português a situação não deixa transparecer maior optimismo. As invasões
francesas marcaram a ferro e fogo os seis anos decorridos entre Junot e
Massena. A transferência da família real para o Brasil fora uma decisão oportuna.
Evitara-se a provável prisão do príncipe regente. E, porventura, a inevitável
abdicação à semelhança do que ocorrera no país vizinho. O expediente debitaria,
contudo, os seus respectivos custos. Mudança repentina, colhe de surpresa e
afecta profundamente o aparelho político nacional. Desde João V, habituara-se a
Nação ao regime paternalista. Estruturalmente, tudo gravitava ao redor da
figura do monarca. Na ausência deste, desarticulava-se o sistema acentuando a
ineficiência governativa. Ao longo do período macerado pela guerra, pouco se
terão sentido os efeitos da acefalia do poder. Porém, provindo a paz, logo
provocará um abatimento colectivo que constantemente se manifesta». In
Fernando Castro Brandão, Aspectos das Relações Diplomáticas Luso-Espanholas, 1814-1821,
separata de A Diplomacia na História de Portugal, Academia Portuguesa da
História, Lisboa, 1990.
Cortesia
da APdaHistória/JDACT