Os Arquétipos
«A censura oficial actuou através
de dois modelos que bem podem ser considerados arquétipos desta instituição em
Portugal e padrões da sua actividade futura: a Censura Inquisitorial que
funcionou nos séculos XVI, XVII e na primeira metade do século XVIII; e a
Real Mesa Censória que a veio substituir em 1768, por providência do marquês de Pombal. Comecemos pelo
primeiro: a Censura Inquisitorial.
A
Censura Inquisitorial
Apesar dos estudos de que
dispomos apontarem para o facto de que a censura em Portugal foi a mais
rigorosa de todas as censuras inquisitoriais e aqui reveste-se, sem dúvida, de
características originais é importante fazer realçar que a censura não foi
inventada pelos portugueses. Começou a ser exercida no Império Romano após a
morte de César: As Memórias do seu lugar-tenente Labieno
foram confiscadas e destruídas pela polícia. Mais tarde, a censura passou a
fazer parte integrante da prática da Igreja Católica desde os seus começos e
foi através desta que passou a fazer também parte da civilização portuguesa. É
interessante lembrar aqui que o cristianismo, como sabemos, alicerçou-se já na decadência
do Império Romano. A censura foi
prática tradicional da Igreja desde os primeiros tempos do cristianismo. Assim
escreve o autor da História da Igreja
em Portugal:
- Uma das armas de defesa empregadas na luta contra a heresia foi a censura dos livros e a proibição daqueles que continham doutrinas heréticas ou simplesmente pouco respeitosas para com as verdades da religião. Desfazerem-se os cristãos dos maus livros era tradição que datava dos primeiros séculos da Igreja; e nunca os pontífices, os bispos e os concílios deixaram de exercer o direito de proibição da leitura de doutrinas falsas e perniciosas. Nos tempos primitivos, segundo refere Santo Anastácio, aqueles que de novo se convertiam à fé queimavam primeiro os maus livros de que se tinham servido. Em 325, o concílio de Niceia, condenou e proibiu os livros de Ario. Em 398, um concílio de Cartago proibiu aos bispos que lessem os livros dos gentios. Em 399, Teófilo, patriarca de Alexandria, condenou e proibiu os livros de Orígenes. Em 401 foram os livros de Nestório. Em 444, o papa S. Leão, num concílio de Chipre. Em 431, o concílio de Éfeso condenou e proibiu os livros de Nestório. Em 444, o papa S. Leão, num concílio celebrado em Roma, condenou e proibiu os livros dos maniqueus e mandou queimá-los publicamente. Em 451, o concílio de Calcedónia, condenou e proibiu os livros do heresiarca Eutiques. Em 494, o papa S. Símaco mandou queimar os livros dos maniqueus diante das portas da igreja constantiniana. O papa Hormisdas também mandou queimar os livros de maniqueus em 523.
A mesma tradição
se prolonga durante a Idade Média. A
censura era pois uma arma de defesa empregada na luta contra as doutrinas
declaradas heréticas ou simplesmente pouco respeitosas. Para além de queimar e
condenar as obras, a Igreja condenava e queimava também os seus autores. Silva
Dias aponta três casos de censura na Idade Média em Portugal, exercida pelo
Ordinário (censura
episcopal). Outros casos deviam ter ocorrido. Este tipo de censura, que se
exerceu sobre estes autores e outros declarados heréticos, tinha, no entanto, características
muito diferentes da que veio a ser exercida mais tarde. A motivação imediata
para a organização e exercício da censura adveio com a invenção
da imprensa por Gutemberg de Mogúncia no ano de 1436. A invenção da imprensa foi uma verdadeira revolução cultural.
Durante a Idade Média, tinha sido fácil vigiar e censurar as produções
intelectuais: os manuscritos eram raros e caros; as teorias consideradas
perigosas não se podiam propagar nem depressa nem longe. Para além disso, a teologia
escolástica reinava e dominava todas as escolas, os únicos centros de vida
intelectual. No começo do século XVI tudo muda. Quando os homens cultos do
Ocidente descobriram com entusiasmo as maravilhas da arte e do pensamento
antigo, no momento mesmo em que o espírito do livre exame penetrava no próprio
seio da Igreja e criticava as ideias que o princípio da autoridade tinha até
então impostas, uma invenção nova punha ao serviço dos pensadores e dos
estudiosos um meio espantoso de propagar as suas ideias. A arte da imprensa
pareceu tanto mais perigosa visto que já se estavam a servir dela para
subverter os princípios fundamentais sobre os quais assentavam as sociedades
civil e religiosa. Sobre os objectivos da censura em Portugal, também o autor
da História da Igreja em Portugal é bem explícito:
- A perfeita adesão à cadeira de S. Pedro foi sempre timbre dos monarcas e fiéis de Portugal, quaisquer que fossem os incidentes que uma ou outra vez embaciassem a cordialidade das relações oficiais. Essa tradição vinha das origens da monarquia, e era tão consistente, que por si só formava grossa barreira à introdução das depravações heréticas.
O mesmo autor prossegue declarando
que:
- Quando era mais aceso o fogo da heresia, nunca os monarcas deixaram de protestar a sua fiel adesão à Santa Sé, e de adoptar providências para que o reino fosse preservado do erro; nem os papas deixaram de contar com a ortodoxia do soberano e dos fiéis de Portugal, manifestando essa confiança em palavras de carinho paternal.
In
Graça Almeida Rodrigues, Breve História da Censura Literária em Portugal,
Instituto de Cultura Portuguesa, Série Literatura, Biblioteca Breve, Amadora,
1980.
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