Uma espécie em vias de emergência
«Dado a
importância que tem o enredo da peça de Sófocles O Rei Édipo para a presente Comunicação, vamos relembrá-lo. O povo
de Tebas está muito preocupado com a maldição que caiu sobre a cidade e destrói
todos os meios de subsistência dos seus habitantes Mas a população espera que o
Rei possa intervir favoravelmente. Édipo procura investigar as causas da praga
mas apenas para se inteirar que ele próprio é considerado o responsável pelo
que se passa. As declarações do vidente Tirésias, as intervenções dos
componentes do Coro, e os depoimentos do pastor e dum outro interveniente tornaram
impossível negar que Édipo não só assassinou o anterior rei de Tebas, seu
próprio pai, como casou com Jocasta, a viúva do seu pai e sua mãe, e dela teve
descendentes. O suicídio de Jocasta, e a auto-punição de Édipo, que a si
próprio se privou da vista, constituem o epílogo desta tragédia.
Dois mil e
quinhentos anos mais tarde Freud fez deste relato mítico o fundamento,
por vezes controverso, duma nova antropologia, e admitiu que é próprio do
homem, como jovem macho, eliminar o pai para chegar à posse física da mãe. Na
peça de Sófocles, o dramaturgo mostra habilmente que Édipo luta constantemente
para provar a sua inocência. Mas uma leitura cuidadosa do texto não deixa
dúvidas, desde o início dos diálogos, de que Édipo é culpado. As
acusações de Tirésias, os comentários do Coro, os depoimentos dos vários
intervenientes, as hesitações de Jocasta, o modo como Édipo ignora factos
evidentes como os que dizem respeito aos seus pés, enfim tudo aponta para uma
mesma conclusão. Mas o mais extraordinário é que tanto no que se passa na cena
como a indecisão e a expectativa que é quase palpável na audiência nos leva a
pensar em algo que excede a capacidade espantosa de Sófocles como dramaturgo.
De facto, depois
do que dissemos, somos obrigados a aceitar estes dois pontos:
- Édipo não levou a cabo uma investigação. O que fez realmente foi encobrir os factos;
- Todos os presentes no palco e fora dele estavam conscientes desses mesmos factos e no entanto procederam como se os ignorassem.
Dito isto,
resta-nos propor um modelo que não só prove a consistência do que se disse atrás,
mas que opondo-se à interpretação freudiana do mito de Édipo seja igualmente
capaz de explicar como é que a mente pode estar consciente dum estado de coisas
e ao mesmo tempo ignorá-las. A 1ª reflexão que nos surgiu foi a
seguinte: como é que se consegue um
modelo da mente que me permita simultaneamente estar consciente de algo e ignorar
tudo acerca disso? Se encaixarmos agora o mito de Édipo no modelo de
Freud obtemos certamente uma resposta, mas não à mesma questão. A descoberta do
inconsciente não contempla a situação de simultaneidade sem a qual o nosso
problema não seria enunciável. Retomando algumas ideias dum pensador
contemporâneo, Sartre, sabemos que este atribuiu à consciência duas
funções distintas e as baptizou como consciência pré-reflexiva e consciência
reflexiva. No 1º caso refere-se ao que diz respeito à realidade como efeito da
espontaneidade, intencionalidade básica duma consciência não-posicional, ao
passo que quando fala de consciência reflexiva isso significa que se trata duma
consciência que se acha inteiramente ocupada em se observar a si própria. Deste
modo, esta consciência de si própria apenas se dedica à construção dos seus
conteúdos, o que torna imediatamente possível que estes possam ser válidos no
que concerne o mundo exterior ou apenas digam respeito a crenças e ilusões.
O
estabelecimento desta distinção é viável na medida em que a espontaneidade da
consciência pré-reflexiva envolve a intencionalidade básica, o que não acontece
com a consciência reflexiva. Contudo no funcionamento da consciência no modelo
que acabamos de propor ficou por tratar o problema da simultaneidade entre a
intencionalidade básica e a construção reflexiva que continua a ser a questão
central que se tem vindo a sublinhar. Vamos para isso propor-vos uma metáfora
que esperamos tornará a situação mais clara. Existe em Topologia um conceito
conhecido como superfície ou fita de Möbius. Suponhamos que dispomos duma fita
de papel duma espessura mínima, longa, e estreita. Procedamos em seguida à
colagem dos dois extremos da fita. Suponhamos ainda que para terminar dobramos
a fita sobre si própria criando assim uma prega. Deste modo, a superfície de
Möbius resultante desta operação, embora aparentemente composta por duas
superfícies, permitiria a um pequeno insecto, por exemplo uma formiga, mover-se
ao longo da fita. A formiga passaria sobre a prega sem se dar conta disso e
poderíamos dizer que ela caminharia simultaneamente nas duas superfícies,
embora obviamente o faça apenas ao longo duma delas». In António Fragoso Fernandes, Da repressão
à Perversão, Opúsculo 5, Pequenos textos de filosofia, ciência e
filosofia da ciência, Centro de Filosofia das Ciência da Universidade de
Lisboa, FCT, 2011
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