Aleph
«(…) A impensabilidade de Deus, a impensabilidade de tudo quanto seja
divino: Deus não pode ser pensado por nós, mesmo que ele nos tivesse criado. A
magnitude abissal do que ele seria, se fosse, basta para não o tentarmos
pensar, mesmo com metáforas e linguagem poética. Deus é sempre demasiado: demasiado grande, demasiado
complexo, demasiado incompreensível, demasido misterioso, etc., para a nossa
mente, limitada para a vertiginosa pequenez do ser humano, mortal e vão. A
nossa mente não pode conceber o ilimitamente ilimitado que seria Deus, só o
podemos imaginar vagamente, como quem passeia à beira de um oceano cujos
exactos limites nem a nossa vista nem a nossa imaginação logram conceber na sua
extensão total. Imaginá-lo na sua infinita extensão e grandeza relevaria de uma
espécie de aposta, diferente daquela que imaginou Pascal, mas com igual sentido
de tentar acertar por palpite, intento desde logo vão e nada seguro. Pensar
Deus é, deste modo, um absurdo: só podemos imaginar vagamente, por
exemplo, o que possa ser o Infinito ou a Eternidade ou o Tempo sem limites ou a simples
morte.
Deus fica sempre para além de,
para além de toda a nossa possibilidade conceptual ou mesmo imaginativa ou
artística, humana, meramente humana, porque finita, vulnerável, incerta, limitada,
de o conceber, de falar dele, de indicar as suas eventuais propriedades,
dimensões, capacidades, etc. Deus é um absoluto absolutamente insusceptível de
ser pensado, apreendido pelo nosso cogito. Mesmo almas tão crentes e
ousadamente cristãs como a de Simone Weil não hesitaram em observar esse
fenómeno de inacessibilidade da esfera do divino: … a infinidade do espaço e do tempo separa-nos de Deus. Como o
procurarmos? Como irmos até ele? Mesmo que andássemos ao longo de séculos, não
faríamos mais do que andar à volta da terra. Mesmo de avião, não faríamos outra
coisa. Não nos é possível avançar verticalmente. Não podemos dar um passo em
direcção aos céus. (Pensées sans ordre concernant l'amour de
Dieu, 1942).
A mística francesa, saída de um judaísmo que nunca chegara a conhecer, caminhando
em plena tormenta dos anos negros da ocupação e da barbárie nazi em direcção a
um Cristo que ela amava com a paixão fervorosa de quem se converte a um ideal extremo
e inevitável, com a mesma dolorosa e dadivosa vontade que a fizera bater-se
pelos republicanos espanhóis, acrescentava, logo a seguir ao texto acabado de
citar, que essa infinidade de espaço podia ser superada pelo amor de Deus: … para além da infinidade do espaço e do
tempo, o amor infinitamente mais infinito de Deus vem-nos colher. Ele vem na
sua hora. Semelhante asserção parte de um postulado místico apriorístico, o
de que Deus ama quem o busca e quem quer por ele ser encontrado, cabendo-nos
tão só acertar ou recusar essa socilitude do próprio divino: Deus ama-nos e vem
buscar-nos movido por esse amor infinito por nós. Petição de princípio de raiz
crente, que nada adianta para quem, como nós, não parte de semelhante premissa,
de qualquer amor prévio e consentidor por parte do próprio Deus, não aceitando
que Deus queira ser amado e procurado, antes duvida que a infinidade do espaço
entre a alma humana e Deus alguma vez possa ser transposta, não fazendo sentido
que seja Deus a tomar a iniciativa de ultrapassar essa distância. Muito ao
invés da postura crente dessa alma esfolada que era Simone, a nossa atitude é
de que, de facto, nunca faríamos mais do que andar à roda da terra se
tentássemos ascender em direcção a Deus, até porque Deus é, desde logo,
insusceptível de ser pensado ou abarcado pela nossa mente ou explicado,
descrito ou sequer referido pela indigente palavra humana». In João Medina, O Silêncio de
Deus em Auschwitz, Aleph,seguido de O Museu do Holocausto, Edição da CM de
Cascais, 2001, ISBD 972-637-089-2.
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