sábado, 12 de julho de 2014

Sebastião da Gama. Sobre a Lenda da Arrábida. João Reis Ribeiro. «Certo é que o mais antigo documento conhecido respeitante a Hildebrando e à sua ligação à Arrábida data do seculo XIII e foi reproduzido por frei António da Purificação (1601-1658), […] na Crónica da Antiquíssima Província de Portugal da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho (1638)»

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Sobre a lenda da Arrábida
«Hildebrando não é nome habitual nas latitudes latinas. O linguista José Pedro Machado atribui-lhe origem germânica, a partir da junção de duas palavras que, na sua tradução inicial, significariam espada de guerra, facto nada inédito se pensarmos que grande parte do vocabulário bélico tem origem germânica. Mas o nome Hildebrando, que consta também no título de um poema heróico germânico datado do século VIII, chegou, em tempos remotos, à serra da Arrábida e fez lenda. De vez em quando, a sua história tem sido invocada e recriada conforme as épocas, alterando-se mesmo a caracterização da personagem que, numas situações, é um rico mercador, enquanto noutras é apresentada como um frade. De comum, entre os dois estatutos existe o facto de ser originário do norte da Europa, chegado à Arrábida em virtude de uma tempestade que atirou o barco para esta região, devoto de uma imagem de Nossa Senhora e salvo de um naufrágio graças a essa mesma devoção.
A história de Hildebrando, constituída em lenda, tentará explicar o efeito místico da serra, conduzirá para uma versão que ajude a perceber as origens de uma devoção, mas não é alheia também às oposições havidas entre ordens religiosas (agostinhos e franciscanos) e, numa versão divulgada em 1988, romanceou mesmo a origem dos nomes de vários pontos da região arrábida. Certo é que o mais antigo documento conhecido respeitante a Hildebrando e à sua ligação à Arrábida data do seculo XIII e foi reproduzido por frei António da Purificação (1601-1658), informando que tinha consultado o original no arquivo da Sé de Lisboa, na Crónica da Antiquíssima Província de Portugal da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho (1638). O documento, dado em Lisboa em 11 de Março de 1220, apresenta Hildebrando como fundador de um templo atribuído à ordem agostiniana: … seja conhecido de todos, presentes ou futuros, quantos virem as presentes letras, que eu, Hildebrando, com grande trabalho e suor, fundei o lugar de Rábida e aí construí uma igreja, em honra de Deus e da Bem Aventurada Virgem Maria, cujo nome aí seja invocado, com licença e mandato do Senhor Bispo e do Cabido de Lisboa. E, passado tempo, vendo que os rendimentos do lugar eram suficientes para uma congregação, instituí nela a Ordem de Santo Agostinho.

Os Religiosos e a Lenda
Por meados do século XVI, foi fundado na Arrábida o convento franciscano, conhecido como Convento Novo. Em 1587, o padre franciscano Francisco Gonzaga (1546-1620) redigiu a obra De Origine Seraphicae Religionis Franciscanae, referindo no capítulo sobre a Província da Arrábida o seguinte: … estando um certo mercador, de nacionalidade inglesa, em perigo, no mar, por causa de uma tempestade que se levantara, e, como não lhe restasse qualquer esperança de salvação, com o navio, em que viajava, a baloiçar entre rochedos e as ondas do mar a encapelarem-se cada vez mais e a cair a noite escura, longe de qualquer auxílio humano e remédio, resolveu, com os restantes marinheiros, em atitude de súplice oração, refugiar-se junto de certa imagem devotíssima da gloriosa Virgem que consigo levava e, não a tendo podido encontrar de forma nenhuma, desiludido na sua esperança, nada mais esperava para além do naufrágio e de uma amarga morte. E eis que, quando menos o pensava, uma certa luz brilhou para si do lado do Monte Arábico. Depois, a história facilmente se adivinha: com a ajuda dos seus homens, o mercador virou a proa do barco para a luz e aportou num espaço calmo e tranquilo. Curioso, o mercador dirigiu-se para o sítio de onde provinha a luz e descobriu a imagem de que era devoto em cima de um rochedo. E continua Francisco Gonzaga: … atribuindo isto à bondade e misericórdia divinas, o próprio mercador, divididas, primeiro, as mercadorias, nesse mesmo lugar onde se fixara a imagem, tratou de construir um eremitério e uma torre contígua a ele, na qual passou o resto de vida que teve sob o hábito de anacoreta, em extrema pobreza, perpétua oração e santidade. Estava dada a primeira versão da lenda da Arrábida». In Sebastião da Gama, Lenda de Nª. Srª. da Arrábida, Associação Cultural Sebastião da Arrábida, nos 90 anos de Sebastião da Gama, 2014.

Cortesia da ACSdaGama/JDACT