O que
são a Terceira e Quarta Crónicas breves de Santa Cruz
«(…)
Mais tarde foi cercar Badajoz, e já a tinha quase conquistada quando o
imperador chegou e cercou por sua vez o rei de Portugal. Este sai a cavalo para
combater o imperador, mas o porteiro do castelo deixou de fora a língua do
ferrolho, o rei bate nela com toda a força e cai do cavalo. Assim se cumpriu
a maldição de D. Teresa. O rei de Portugal é preso pelo imperador, cede-lhe
as terras da Galiza e de Leão e promete vir-lhe prestar menagem logo que possa
montar a cavalo. O imperador deixa-o seguir para Coimbra. Mas desde então o rei
de Portugal nunca mais montou, fazia-se transportar de carreta e em colos de
homens, até que morreu. Tal é, em resumo, o assunto do texto a que Diego Catalán
chamou o Poema de Liberdade de
Portugal. Neste resumo não é possível dar um elemento essencial dele
que são as falas dos personagens. A maior parte do texto é constituído por
essas falas, quase todas muito curtas, formadas por vezes com uma só palavra,
em sequências de diálogos. A mais longa é o discurso do conde Henrique antes de
morrer.
Mas
mesmo esta nada tem de oratória: é uma série de conselhos em estilo muito
directo e prático. Isto faz com que este texto nos lembre certos rimances
populares que são essencialmente dramáticos e em que a narrativa serve só para preparar
a contracenação dos personagens. O resumo, que tem de ser feito em discurso
indirecto, próprio da narração, eclipsa inevitavelmente este carácter
consubstancial no nosso texto. Basta no entanto o resumo para tornar evidente
que ele nunca poderia ter sido obra de monges ou clérigos, a quem jamais
ocorreria dar relevo a um conflito de Afonso Henriques com o papa, e sobretudo
desta maneira, em que o rei de Portugal aparece vitorioso, conseguindo
levantar, por obra e graça da sua espada, a aplicação de um interdito
eclesiástico. Note-se especialmente a humilhação a que é sujeito o cardeal legado.
Teremos ocasião de analisar em pormenor qual é o significado do episódio do bispo negro, muito expressivo desta
orientação do nosso texto.
Não provindo de um escritório de
clérigo, donde pode ele provir? Notemos primeiro que se trata de uma
estória com um enredo circular, cujos episódios giram à volta de uma acção
única, o cumprimento de uma maldição. Não se trata de uma história de Afonso
Henriques, mas só dos acontecimentos que preparam e que são consequência da
maldição de D. Teresa, que é a segunda grande personagem do poema. Para ser uma
verdadeira história de Afonso Henriques o nosso texto deveria falar da conquista
de Santarém, da tomada de Lisboa, da fundação de Santa Cruz e de Alcobaça, e
sobretudo insistir na guerra contra os mouros. Para nós, Afonso Henriques é o
invencível adversário guerreiro dos mouros. Para o autor desta história é um
príncipe em luta com o rei de Leão e com o papa, um filho em guerra com a mãe e
o padrasto. A referência à batalha de Ourique pode explicar-se pelo
facto de na primeira parte da história o herói ser tratado como Afonso Henriques e na segunda
(intervenção do papa, etc.) como o rei,
pois foi depois desta batalha que ele passou a usar este título. Pode
objectar-se que pelo assunto a estória do bispo
negro pouco tem a ver com o caso da zanga da mãe e do filho. Mas
formalmente e do ponto de vista novelesco há um enquadramento: foi para
conseguir a libertação de D. Teresa que o papa interveio e excomungou o reino,
facto que arrastou a fuga do bispo, a nomeação
do bispo negro, etc. Talvez se trate de tradições inicialmente desligadas,
mas o facto evidente é que houve a intenção de as ligar pelo mesmo anel, que
é o cumprimento inexorável da maldição. São dois painéis de uma mesma composição,
o painel de Afonso Henriques e
o painel do rei, aos quais
serve de dobradiça a referência à batalha de Ourique, que explica como o Afonso
Henriques, do primeiro painel se tornou o rei
do segundo.
Por
outro lado devemos levar em conta o carácter dramático que já notámos no nosso
texto. Ambas as considerações nos
impõem a conclusão de que se trata de uma composição jogralesca. É a
hipótese que já pusemos em 1951, ao
mesmo tempo que Lindley Cintra, mas separadamente, quando da edição da História
da Cultura em Portugal. Essa hipótese acha-se hoje reforçada por
diversas razões». In António José Saraiva, A Cultura de Portugal, Teoria e História,
Gradiva, Lisboa, 1991, 2007, ISBN 978-972-662-190-4.
Cortesia
de Gradiva/JDACT