«(…) Na lista dos pecados capitais o primeiro não é a luxúria, mas o
orgulho, quer dizer a tentação de nos tomarmos pelo nosso próprio fim. Se a
concupiscência no sentido habitual é não só sujeito de ficção, mas origem de
toda a ficção, ao menos na cultura judeo-cristã, porque os personagens que ela
envolve se autodramatizam através de um antagonismo ou de uma contradição entre
a finalidade imediata da pulsão incontrolável do Desejo e o obstáculo
que a torna inexequível ou impossível, obstáculo da norma, do desejo do outro,
ou obstáculo simbólico incontornável, tabu ou Deus. O imaginário medieval
despossui a concupiscência de sujeito próprio, autoficcional, lendo-a como
teatro de rivalidade entre Deus e o Diabo. É uma idade de natural inocência
erótica. A dramaticidade extrínseca ou objectiva do conflito que a sensualidade
representa então, reflui para o campo meramente humano, mas exacerbada ainda no
momento em que a ideia de Mal em sentido próprio, quer dizer, Satã, em sintonia
com o obscurecimento da ideia de Bem, perde credibilidade. Preparada pelos
séculos XVII e XVIII, que são também, dialecticamente, os de Milton e de Goethe,
essa perda de credibilidade exprime-se no plano da ficção pela emergência do
erotismo como libertinagem ou licenciosidade, desdramatização de Eros, pelo
menos na aparência. O erotismo frio de Laclos como o jubilatório de Diderot exprimem
as duas faces dessa desdramatização do erotismo, ficcionado como oposição entre
Deus e Satã.
Eça de Queirós, como a sua geração, pensava que essa mitologia, que era
um subtil exercício para inocentar a nossa realidade como sensual, estava esgotada.
Num dos seus mais penetrantes escritos, O
Egipto, tal como já o fizera sob o modo fantástico-simbólico nas Prosas Bárbaras, Eça de Queirós constata
essa decadência do Diabo e relaciona-a, à primeira vista, de maneira paradoxal,
com análoga decadência do Amor, que escreve com maiúscula, platónica ou
romanticamente, para acentuar bem a sua essência sublimante, senão divina: Hoje, nas cidades do Oriente, o Amor não
existe. De resto, por toda a parte, o Amor está velho, decrépito; começa como o
Diabo a ser caricaturado, emprega-se para viver em pequenos misteres lucrativos,
e já se pensa no seu epitáfio. Mas se o Amor estava velho, o erotismo podia
viver e mesmo exultar na sua vida crepuscular. Eça acrescenta: o Amor vive sobretudo da imaginação, da
literatura, do catolicismo, do romance, da influência da natureza vegetal e
celeste, e da delicadeza das relações na vida. Esta topologia ou genealogia
do Amor, com ecos de códigos diferentes, justificaria por si só a ideia de João
Gaspar Simões de que a ficção de Eça, não por antítese com o romantismo, mas
visceralmente, é estranha ao Amor.
Não lhe é estranha, mas não o assume senão como ficção alimentada pela ficção.
Todos os seus romances ou contos são a ilustração desta visão do Amor
que não é de ordem especulativa mas uma vivência se pode chamar assim a
consciência ferida, não pela incapacidade ou impossibilidade de amar, mas pela inanidade
intrínseca da experiência amorosa. A indigência do Amor tal como na ficção de
Eça abundantemente se glosa, quer sob o modo satírico ou burlesco (A Capital, O Primo Basílio, Alves e Comp.a),
dramático (O Crime do Padre Amaro),
trágico (Os Maias) não é a do
eros platónico, com a sua aspiração para a Beleza-Bem, é, a da ausência vivida
de relação positiva e durável com o outro,
realmente outro. Só sob a forma
fantasmagórica da confusão do outro (Amélia,
a própria Maria Eduarda), com entidades sacralizadas (Jesus, a Virgem) ou simbólicas
(deusas, Vénus, Ceres ou Juno, filhas do imaginário grego e pouco credíveis) é
que a fusão amorosa se ficcionaliza. Em suma, o outro, ou antes, a outra,
despida da sua aura mítica, deixa mesmo de ser a estátua que fascina para ser apenas
carne ex-divina que repugna. Se na
verdade o Amor vive da imaginação, a queirosiana, suporte da sua ficção, não
vive como a de Garrett ou Camilo do Amor mesmo, da paixão que cria o seu objecto
e nele se encontra perdendo-se, mas do puro Desejo e suas múltiplas miragens.
Mas aí ocupa o espaço inteiro, fazendo da sua ficção o mais preciso, minucioso,
criativo inventário da vivência erótica, não apenas da língua portuguesa mas
porventura da literatura universal. Para preencher a carência original da vivência
amorosa, não como contradição assumida e sempre miraculosa de um eu
que se perde para se encontrar, desejado na totalidade do seu ser, Eça deixa o
campo inteiro ao Desejo que objectiva
o outro, não na sua alteridade físico-espiritual, mas na sua particularidade, elevando-a
a representação do todo». In Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e
Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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