Resumo
«Esta palestra apresenta um balanço da história rural portuguesa, com
ênfase nas décadas posteriores à Revolução
de Abril (décadas de 1970, 1980 e 1990). Para tanto, recupera a
produção historiográfica desde o final do século XIX, para afrontar o
surgimento, a partir das décadas de 1950 e 1960, de trabalhos afinados
com a Escola Francesa que vão estar na raiz da renovação dos estudos agrários
das décadas de 1980 e 1990. Finaliza com considerações acerca do futuro destes
estudos em Portugal, tendo em vista as transformações sofridas pelo seu meio
rural com a União Europeia e as exigências da economia contemporânea».
«Perfilho a posição de
que o historiador é, no geral, um homem comprometido com o seu tempo. Ou dito
pelas palavras de Michel Certeau, recolhidas na compilação A Nova História, quer
se queira, quer não, o trabalho histórico inscreve-se no interior (e não
fora) das lutas socioeconómicas e
ideológicas. A Revolução de Abril repercutiu-se na história que se faz e fez
em Portugal. Nas temáticas, nas metodologias, nas cronologias, nas
interpretações. Redimensiona-se a história económica e social, caminha-se para
a história das mentalidades, entrecruza-se o saber histórico com o de outras
ciências sociais e humanas. Estende-se a investigação, com grande candência,
aos olvidados séculos XIX e XX, séculos de revoluções e amplas mutações
políticas e polémicas ideológicas. Desconstroem-se velhos mitos da história
pátria.
Filha desse tempo, em
que se vivia a acesa polémica da reforma agrária, das cooperativas agrícolas,
das apropriações dos baldios, é assim a história rural que se produz
essencialmente na década de oitenta. Nela convergindo, igualmente, toda a
experiência estrangeira, especialmente a francesa, de uma história agrária que,
de quantitativa e serial, progrediu para uma história total, mas modelizada
geo-historicamente no espaço regional, que se vai abrindo, sucessivamente, a
temáticas cada vez mais abrangentes, sugeridas pela antropologia e sociologia
históricas. Não se trata, porém, de um fruto novo, abrupto, inédito. Tem raízes
variadas. Mas adquire, sem dúvida, uma nova feição, modelada pela interacção
entre presente e passado, que sempre percorre a construção histórica. As raízes
podê-las-íamos buscar em tempos mais longínquos ou mais próximos. Comecemos
pelos mais remotos. Por entre finais do século XIX e início do XX, a par da privilegiada
história política e institucional, alguns assomos precoces de uma história
económica e social se entreviram. Assim aconteceu com as obras de Alberto
Sampaio, As vilas do norte de Portugal
(1905-1908) e As
póvoas marítimas (1893-1895),
em que emergia a problemática da geografia do povoamento, das formas de
propriedade e de aspectos vários do mundo rural, ou, com esse outro livro de Costa
Lobo, História da sociedade em
Portugal no século XV (1903),
em que o seu autor nos dá a conhecer múltiplas facetas sociais e económicas
dessa época histórica, desde a população, da sua caracterização demográfica e
social, aos pesos e medidas, preços, moeda e haveres individuais. E mesmo um
erudito historiador das instituições como foi Henrique Barros, na sua
magna obra História da administração pública
em Portugal (1885-1922), não
deixa de dedicar cenas tomos à população, à economia ou à sociedade, até bem
mais completos que os da própria administração, que não chegará a completar em
toda a sua amplitude. Por sua vez pensadores como António Sérgio ou Jaime
Cortesão, na exposição das suas teses e na abrangência das suas sínteses,
levantaram novos véus à reflexão socioeconómica sobre a História de Portugal.
Mas depois destes
alvores que prometiam, a máquina do Estado Novo e os seus ideólogos repuseram
como temas centrais do travejamento histórico a formação da nacionalidade e o
passado de certas instituições medievais, a epopeia dos descobrimentos ou o
movimento patriótico da Restauração. Todavia, a década de 1950-1960 anuncia alguma
renovação e arejamento, nela se conjugando a interdisciplinaridade com o aparecimento
de obras vocacionadas para diferentes temáticas ou imbuídas de novas
metodologias. Os ensinamentos de etnógrafos como Leite Vasconcelos, de filólogos
como Rodrigues Lapa e Lindley Cintra, de geógrafos como Orlando
Ribeiro começam a não ser
indiferentes aos historiadores, que lentamente se apercebem da dimensão da
história como ciência humana e social e da sua íntima relação com todas as
outras que giram em torno do homem como ser social. Um destaque especial
merecem os estudos dos etnólogos Jorge Dias e Fernando Galhano
que dão a conhecer as alfaias agrícolas tradicionais portuguesas. E é ainda Jorge
Dias que nos oferece os estudos clássicos sobre as ancestrais tradições comunitárias
do Portugal transmontano, nas obras Vilarinho
das Fumas, uma aldeia comunitária (l948)
e Rio de Onor. Comunitarismo agro-pastoril
(1953).
In Maria Helena Cruz Coelho, Balanço
sobre a História Rural produzida em Portugal nas Últimas Décadas, Conferência,
Mestrado em História das Sociedades Agrárias, Universidade Federal de Goiás, 1997, Faculdade
de Letra, Coimbra, História Revista, 2 (I), 1997.
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