Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa
Americana
«(…) Na maior parte dos casos, só os conseguiam através de uma
insistente negociação, se bem que esta prática estivesse interdita àqueles funcionários
da coroa. Assim, munidos de guardas e carregadores, que aos ombros conduziam os
fardos de fazendas, os instrumentos de prisão e os ferros de marcação dos
escravos, a alimentação, somente a indispensável, partiam os comboieiros para o interior, onde o mais
pequeno sinal da sua presença transformava a região num campo de luta e caça ao
homem. Nessas alturas, intensificavam-se as guerrilhas e os assaltos, surgiam novos
delitos e acusações, multiplicavam-se os ódios e as desconfianças. A coberto da
noite incendiavam-se as choupanas para na fuga desvairada, se apanharem os
sobreviventes. Nos caminhos, construíam-se armadilhas, armavam-se ciladas em
que caíam os mais desprevenidos. Aos crimes de morte, roubo ou adultério, que
tradicionalmente já eram castigados com a venda do infractor como escravo,
juntavam-se agora outras faltas ligeiras. Os processos de prova eram
verdadeiros ardis, feitos à base de venenos, ferros em brasa e águas a ferver,
dos quais resultava sempre a condenação do acusado e da sua famílias.
Contudo, os escravos eram, em grande parte, prisioneiros de guerra capturados
em lutas movidas pelo espírito de conquista territorial ou simplesmente
suscitadas com o intuito de adquirirem prisioneiros para venda. Inclusivamente,
os mercadores, para obterem o maior número de escravos, não se privavam de
tecer intrigas junto dos régulos, adivinhos ou elementos a eles afectos,
aliciando-os com ofertas, a maior parte das vezes bebidas, com as quais os embebedavam.
Os vinhos e aguardentes eram, aliás, um elemento importantíssimo neste processo
de negociações; tão importante que o mercador levava já separada toda a bebida
que devia ser distribuída como presente, talvez para a distinguir do vinagre,
que ali corria no mesmo paralelo, ou
daqueles vinhos e aguardentes já alterados com
água pura ou salgada temperada com pimentões para fortalecer a fraqueza da sua ardência.
Esta inclinação dos homens da terra era aproveitada ao máximo pelos
negociantes. Elias Corrêa comenta a este propósito que sem entrevir a giribita repugnam os negros concluir os seus negócios;
e termina dizendo ser uma felicidade
para os comerciantes do Brasil e da África terem a inclinação dos habitantes a seu favor. Alucinados pela bebida,
incitados à guerra, auxiliados pelas armas europeias, facilmente os negros se
entregavam a operações de razia, de onde resultavam muitos prisioneiros. O
efeito depredatório destas guerras contínuas reflectia-se de tal modo na
situação económica das populações, que passaram a ter na escravização uma solução
possível para a sua subsistência, o que os levava amiúde a vender os próprios
familiares. Mas, igualmente, os vendiam ou penhoravam, na ânsia de adquirirem
mercadorias ou no delírio da embriaguez.
No quadro das sociedades africanas, não só os criminosos, mas também os
devedores insolventes eram punidos com a escravidão. Um condenado podia nomear
alguém para sofrer por ele a sua pena. porém, este direito estendia-se somente
àqueles indivíduos que lhe estavam subordinados e tinha que englobar mais do
que uma pessoa, variando o seu número consoante a gravidade do delito ou o
montante da dívida. Não é de admirar, por isso, que se concedessem facilmente
mercadorias a crédito, uma vez que o credor, mesmo que o devedor desaparecesse com
a mercadoria, tinha sempre um modo de reaver o seu dinheiro. Os capitães
negreiros tinham por norma conceder géneros fiados aos agentes negros,
aceitando unicamente como penhora os filhos ou parentes mais próximos. Este
facto pressionava-os a cumprirem os prazos do contrato e a trazerem o número de
escravos ajustado. Desta maneira, se convertiam os factores mais ternos do coração em instrumentos de crueldade e de
injustiça, não poupando meios para pagar a sua fazenda». In
Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura,
Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.
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