Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa
Americana
«(…) Alguns dos escravos que se encontravam presos no interior já estavam
a ferros há muito tempo, por vezes anos a fio, à espera de quem os comprasse.
Era grande a sua angústia e, quando as caravanas dos mercadores chegavam,
manifestavam-se apreensivos quanto à sorte que os esperava. Testemunha Mungo Park,
explorador inglês integrado num desses comboios,
que eles olhavam os traficantes com horror e insisentemente perguntavam qual o
destino dado aos escravos que passavam a água
salgada. A firme persuasão em que estavam, de que os brancos compravam os
negros para os comerem ou para os venderem a outros que os comiam, fazia com
que olhassem com incrível pavor a viagem. A sua perturbação era grande e os
mercadores, receosos de alguma fuga, revolta ou suicídio, mantinham-nos
constantemente presos.
A medida que os iam comprando, agrilhoavam-nos dois a dois a uma
corrente que, embora muito devagar, lhes permitia caminhar. Para maior
segurança, dividiam-nos, depois, em grupos de quatro, que acorrentavam pelo
pescoço. E à noite prendiam-lhes ainda as mãos com argolas de ferro. Aos menos
submissos, destinavam um grosso cepo onde ficavam presos pelas pernas ou,
então, um tronco de madeira, aparelho que abria pelo meio, fechava com forte
argola de ferro e tinha orifícios escavados por onde podiam passar o pescoço,
os braços ou as pernas dos escravos, mantendo-os imobilizados.
Ao acto da compra, seguia-se a primeira marcação, com ferro em brasa,
que lhes imprimia o sinal do mercador para poderem ser reconhecidos em caso de
fuga. E quando o número de escravos era já suficiente, iniciava-se a penosa
marcha em direcção ao litoral, que poderia durar largos meses. Os escravos
caminhavam acorrentados, com o braço direito preso nos anéis dos libambos e o pescoço entalado nas gargalheiras
de ferro ou na forquilha das prisões de pau e correias entrelaçadas. A cada
passo, os mais resistentes arrastavam consigo aqueles a quem já iam faltando as
forças. E se, sob a vigilância atenta dos guardas, o andamento abrandava, ou se
alguém se recusava a prosseguir, a autoridade do chicote anunciava que era
necessário continuar e que só a morte dali os podia libertar.
Às costas levavam o carapetal,
saco que continha a ração que o mercador lhes destinava até chegarem a outro
presídio, onde de novo se abasteciam. O sal, por ser pesado, faltava na
alimentação, tornando-a insípida e desagradável. Como também faltavam a pimenta
e o azeite, condimentos tão a seu gosto; comiam somente para não morrer. A escassez
aliava-se o mau estado dos alimentos, comprados já deteriorados, o que os
tornava mais baratos, e a sua má confecção, uma vez que tudo era cozinhado
à pressa, apenas aferventados em
função do tempo do mercador e da distância a percorrer. A água, só a bebiam
quando se aproximavam dos charcos e lagoas. Por cama tinham o chão e as próprias
folhas das árvores nem a todos protegiam da cacimba que continuamente caía durante
a noite, ensopando o único vestuário que possuíam ou o que dele restava. Uma fogueira
era o seu único conforto, porém, insuficiente para atenuar os efeitos nefastos
do orvalho e da falta de vestuário, que estavam na origem de muitas das enfermidades
de que padeciam. As grandes febres chamadas carneiradas,
atribuídas aos efeitos da cacimba, eram significativas pela maneira como se
propagavam e dizimavam os escravos em poucos dias.
As horas de sono eram passadas numa modorra constante sob os gritos dos
guardas que frequentemente os acordavam com receio de algum levantamento,
sugestionados pela crença de que os escravos conheciam uma erva capaz de
amaciar e estalar o ferro das prisões. Chegavam aos portos marítimos já muito
debilitados. Eram, então, permutados pela segunda vez. No entanto, os
comerciantes continuavam a mantê-los presos com as mesmas correntes com que
tinham viajado, ou fechavam-nos em pátios de altas paredes e devidamente apetrechados
com correntes de ferro, argolas encastoadas, cepos de madeira e grilhões. À
noite, tinham agora o privilégio de um telheiro ou armazém térreo, mas tão
imundo que o cheiro que exalava, segundo o médico setecentista Francisco Damião
Cosme, até fazia delíquios e vómitos a
quem passasse defronte». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de
Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN
978-972-772-957-9.