quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Chão de Sombras. Maria do Rosário Pimentel. Estudos sobre Escravatura. «As horas de sono eram passadas numa modorra constante sob os gritos dos guardas que os acordavam com receio de algum levantamento, sugestionados de que os escravos conheciam uma erva capaz de amaciar e estalar o ferro das prisões»

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Aspectos do Quotidiano no Transporte de Escravos no Século XVIII
Do Sertão Africano à Costa Americana
«(…) Alguns dos escravos que se encontravam presos no interior já estavam a ferros há muito tempo, por vezes anos a fio, à espera de quem os comprasse. Era grande a sua angústia e, quando as caravanas dos mercadores chegavam, manifestavam-se apreensivos quanto à sorte que os esperava. Testemunha Mungo Park, explorador inglês integrado num desses comboios, que eles olhavam os traficantes com horror e insisentemente perguntavam qual o destino dado aos escravos que passavam a água salgada. A firme persuasão em que estavam, de que os brancos compravam os negros para os comerem ou para os venderem a outros que os comiam, fazia com que olhassem com incrível pavor a viagem. A sua perturbação era grande e os mercadores, receosos de alguma fuga, revolta ou suicídio, mantinham-nos constantemente presos.
A medida que os iam comprando, agrilhoavam-nos dois a dois a uma corrente que, embora muito devagar, lhes permitia caminhar. Para maior segurança, dividiam-nos, depois, em grupos de quatro, que acorrentavam pelo pescoço. E à noite prendiam-lhes ainda as mãos com argolas de ferro. Aos menos submissos, destinavam um grosso cepo onde ficavam presos pelas pernas ou, então, um tronco de madeira, aparelho que abria pelo meio, fechava com forte argola de ferro e tinha orifícios escavados por onde podiam passar o pescoço, os braços ou as pernas dos escravos, mantendo-os imobilizados.
Ao acto da compra, seguia-se a primeira marcação, com ferro em brasa, que lhes imprimia o sinal do mercador para poderem ser reconhecidos em caso de fuga. E quando o número de escravos era já suficiente, iniciava-se a penosa marcha em direcção ao litoral, que poderia durar largos meses. Os escravos caminhavam acorrentados, com o braço direito preso nos anéis dos libambos e o pescoço entalado nas gargalheiras de ferro ou na forquilha das prisões de pau e correias entrelaçadas. A cada passo, os mais resistentes arrastavam consigo aqueles a quem já iam faltando as forças. E se, sob a vigilância atenta dos guardas, o andamento abrandava, ou se alguém se recusava a prosseguir, a autoridade do chicote anunciava que era necessário continuar e que só a morte dali os podia libertar.
Às costas levavam o carapetal, saco que continha a ração que o mercador lhes destinava até chegarem a outro presídio, onde de novo se abasteciam. O sal, por ser pesado, faltava na alimentação, tornando-a insípida e desagradável. Como também faltavam a pimenta e o azeite, condimentos tão a seu gosto; comiam somente para não morrer. A escassez aliava-se o mau estado dos alimentos, comprados já deteriorados, o que os tornava mais baratos, e a sua má confecção, uma vez que tudo era cozinhado à pressa, apenas aferventados em função do tempo do mercador e da distância a percorrer. A água, só a bebiam quando se aproximavam dos charcos e lagoas. Por cama tinham o chão e as próprias folhas das árvores nem a todos protegiam da cacimba que continuamente caía durante a noite, ensopando o único vestuário que possuíam ou o que dele restava. Uma fogueira era o seu único conforto, porém, insuficiente para atenuar os efeitos nefastos do orvalho e da falta de vestuário, que estavam na origem de muitas das enfermidades de que padeciam. As grandes febres chamadas carneiradas, atribuídas aos efeitos da cacimba, eram significativas pela maneira como se propagavam e dizimavam os escravos em poucos dias.
As horas de sono eram passadas numa modorra constante sob os gritos dos guardas que frequentemente os acordavam com receio de algum levantamento, sugestionados pela crença de que os escravos conheciam uma erva capaz de amaciar e estalar o ferro das prisões. Chegavam aos portos marítimos já muito debilitados. Eram, então, permutados pela segunda vez. No entanto, os comerciantes continuavam a mantê-los presos com as mesmas correntes com que tinham viajado, ou fechavam-nos em pátios de altas paredes e devidamente apetrechados com correntes de ferro, argolas encastoadas, cepos de madeira e grilhões. À noite, tinham agora o privilégio de um telheiro ou armazém térreo, mas tão imundo que o cheiro que exalava, segundo o médico setecentista Francisco Damião Cosme, até fazia delíquios e vómitos a quem passasse defronte». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.

Cortesia de Colibri/JDACT