terça-feira, 19 de agosto de 2014

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «O segredo da sobrevivência, pelo menos um deles, se é que há segredos na vida, é este refazer contínuo da morte, o poder de ultrapassar a dor, a agonia, o soçobrar do nosso espírito. Vamos realmente continuando vivos…»

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E Todos os Caminhos levam ao Falcão da Luz de Maio
«(…) Pode dizer-se que não pararam até à morte do rei Afonso mas o período mais rico de novos títulos nobiliárquicos aconteceu entre 1451 e 1476. Os jovens senhores, a maior parte deles, rodeavam o jovem e elegante monarca numa corte alegre, colorida, faustosa e culta, toda ela, diga-se em nome da verdade, tutelada pelos Braganças.
O nascimento de um príncipe herdeiro em Janeiro de 1451 encheu todos de alegria. Foi em Sintra, onde mais tarde, prematuramente envelhecido, triste, desiludido e esgotado, se finaria o pai. A jovem rainha pariu-o talvez na mesma sala de colunatas frustes onde morreria o marido e, crente de S. João Evangelista, pôs-lhe o nome de João. Durou pouco tempo. Poucos dias. Era uma criatura frágil, de pele pálida, cabelos ralos e durou dias para angústia dos pais cujas esperanças se desvaneciam. Mas eram novos. D. Isabel, rodeada das aias e, depois, refugiada nos braços do marido também inconsolável, chorou como qualquer mãe ferida e desolada, mas a vida continua. Era forçoso continuar... E ela tinha por missão dar um herdeiro ao marido. O segredo da sobrevivência, pelo menos um deles, se é que há segredos na vida, é este refazer contínuo da morte, o poder de ultrapassar a dor, a agonia, o soçobrar do nosso espírito. Vamos realmente continuando vivos, recuperando forças e, às vezes, acabamos mesmo por pensar que, de novo, atingimos a felicidade e que tudo acabou atrás de nós, apagados pela nossa memória os actos, os seres, os indiferentes e os amados, tudo, tudo, mas não é verdade. Cada etapa de uma nova vida, de um novo capítulo com os seus rituais e ritos de passagem, não é mais que um passo imenso porque cada vez maior para a nossa morte, esse derradeiro e definitivo acto sobre as tábuas do palco improvisado e quantas vezes banal também da nossa pessoal tragédia, desta permanente representação que nos foi dada cumprir e acatar.
Mas D. Isabel ainda não o sabia. O garoto foi sepultado no Mosteiro da Batalha, na capela de Nossa Senhora do Rosário. O rei continuava o seu trabalho que, como o do pai, o obrigava a um despacho diário ocupado desde a manhã até à ceia, com intervalos para a sesta e os serviços religiosos e ainda assuntos da sua casa. Nas Cortes desse ano, que foram acesas em queixas dos povos, os judeus foram razão de pedidos para acabar com o seu luxo excessivo pois até usavam roupas de seda. De resto, em 1445, eles renovar-se-iam, esses lamentos contra a raça maldita e deicida, mas o rei preferia sempre contemporizar. Na política externa incluíam-se as futuras campanhas do Norte de África e, antes, um assunto de grande importância: o casamento da infanta D. Leonor, irmã do rei. O imperador do Sacro Império Romano pediu-a em casamento, depois de a escolher entre as três irmãs.
Frederico III, um louro gigante teutónico escolheu para esposa a pequenina jovem de rosto corado oval, cabelos castanhos e olhos negros que foi a mãe do grande Maximiliano de que, mais tarde, o rei João tanto se orgulhava. Os dois embaixadores, dos quais o mais importante se chamava Nicolau Valckenstein, depois de uma atribulada viagem pela Europa, chegaram a Lisboa e foram recebidos na corte pelo rei. Pediam a mão, para Frederico imperador dos Romanos e sempre Augusto, duque de Áustria, Estíria , Caríntia, Carníola, conde de Tirol, etc., etc., da linda princesa filha de D. Leonor de Aragão e do eloquente rei Duarte I. Os embaixadores chegaram esgotados, depois de atravessarem a Alemanha, a Sabóia, Genebra, de sulcarem o Ródano até ao Delfinado, depois o Languedoc, Montpellier, Toulouse, Roncesvales, Catalunha, após a passagem por Narbona e Perpignan... Sicília, depois subiram a Castela e quando os esgotados mestre Tiago Moetz e Valckenstein finalmente chegaram (até assaltados foram pelo caminho) tinham muito que contar. Um deles, pelo menos, acho que o fez, pois escrevia notas para um longo relatório, segundo me disseram. Perguntava a torto e a direito tudo o que lhe vinha à cabeça e até pormenores sem importância.
No mês de Agosto a cidade de Lisboa parecia um enorme teatro onde as festas e folguedos, as justas, os bailes não paravam, nem se esgotavam os presentes de belos tecidos como bons e ricos panos e até brocados e comida ao próprio povo que o rei oferecia. A noiva casou por procuração e ficou alojada no paço de S. Cristóvão, pertença do duque de Bragança e o conde de Ourém, seu primo, levou-a a Liorne, numa viagem por mar que a conduziu primeiro a Ceuta e depois às costas mediterrânicas. Era viagem difícil por causa dos piratas, mas uma verdadeira frota acompanhava e protegia essa neta de João I que deu a conhecer à Alemanha a cortesia, a cultura, a riqueza da Corte de Portugal. Com ela foram os primeiros candelabros da mesa real já que o costume dos Teutões era espetarem velas e brandões em pães enormes, no centro das mesas para iluminar as parcas refeições onde tudo era consumido com as mãos e rasgadas as carnes com os dentes». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT