Obra da Geraçã Humana. Uma Bella Moralidade Quinhentista
«(…) Uma opinião nos atrevemos, desde já, a emitir: poderá a autoria
gil-vicentina do Auto ser controversa, e até legitimamente impugnada por alguns,
por faltarem, até hoje, argumentos inequívocos em sua defesa; tudo isto não
significará, porém, que a Obra da Geraçã humana haja de
pertencer a algum daqueles autores que viveram das varreduras do Mestre, na saborosa e inigualável expressão do
Soropita. No Auto não faltam dons artísticos, nem intensidade poética,
religiosidade, nem sequer erudição, requisitos estes em geral arredios da quase
totalidade da produção dramática dos epígonos, impropriamente chamados discípulos de Gil Vicente. Mas serão os
caracteres antes apontados factor indicativo de autoria gil-vicentina, ou
deveremos antes abraçar a conclusão formulada por Teófilo Braga em 1898, se bem que alicerçada em débil argumentação? É pois o Auto da Geração Humana uma imitação de Gil Vicente por autor
contemporâneo do poeta, e que já nesse tempo se considerava famoso.
Em relação ao Auto de Deos Padre, Justiça e Misericordia,
Obra novamente feita, também
envolvido nesse pleitear da autoria pró-vicentina, a estrofe sotoposta à portada
dá margem a larga reflexão e a sérias dúvidas, no que respeita à possível
intervenção de Gil Vicente:
A qual obra vay enmendada
por huü muy famoso autor
que ate aqui andava errada
de mentiras atestada
sem ter nenhuü valor.
Se se pretender estabelecer um confronto, reconhecer-se-á que bem
diferente é o que se diz no conhecido colofão: Autos das Barcas que
fez Gil Vicente per seu (sic) mão. Corregido e impremido por seu mandado.
Seja como for, embora Teófilo Braga não tenha defendido a autoria gil-vicentina
da Obra
da Geraçã humana, contudo é com ele que se suscita essa hipótese,
depois aproveitada e desenvolvida em trabalhos de estudiosos subsequentes. Mas
a ideia, mesmo incipiente ou sob color de sugestão, ninguém lha pode negar, e
isto ainda não foi dito com suficiente clareza. Foi em Maio de 1948, em duas lições proferidas em 20 e
27 desse mês, mas editadas só em 1949,
na Biblioteca de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa, que o
saudoso investigador francês Révah, cujos relevantes trabalhos acerca do Teatro
Português quinhentista nunca será de mais enaltecer, desenvolveu a tese da autoria
gil-vicentina para a Obra da Geraçã humana e para o Auto de
Deos Padre, Justiça e Misericordia, dos quais nos interessa neste momento
o primeiro. Deste auto, tinha apresentado o ilustre estudioso, nesse mesmo ano
de 1948, a primeira edição moderna,
com a qual desejava oferecer ao público um texto acessível do Auto
que pretendia restituir a Gil Vicente, servindo-se de bem arquitectada argumentação
que viria a expor nas lições. Nem todos os especialistas aceitaram de boa mente
a tese de Révah, que encontrou em Costa Pimpão o seu mais qualificado e
autorizado opositor na época.
Por que motivo se não inclui este auto na Copilacam de todalas obras de Gil
Vicente que seu filho, Luís
Vicente, publicou em 1562? Eis a primeira objecção que se lhe opôs,
tanto mais que a Obra da Geraçã humana tem gravada na portada a data de 1536. Responde Révah de maneira
satisfatória: no próprio texto da Copilacam se declara que a edição não
é completa (seus filhos reuniram o que puderam encontrar, e daí a não inclusão
dos autos anónimos) e, se outras razões não houvesse, aí tínhamos nós o exemplo
do Auto
da Festa, que nela se não contém, desconhecido dos modernos até 1906, ano em que o conde de Sabugosa o
publicou, extraindo-o de uma miscelânea da sua livraria particular. Mas, ainda
que este exemplo faltasse, sabemos, por outro lado, que Gil Vicente não pôde
realizar a edição completa e definitiva da sua obra, como lhe ordenara o rei
João III. Após os trabalhos de Braamcamp Freire, e os seus próprios, Óscar
Pratt concluiu, com algum exagero, é certo, que a Copilacam de 1562 é o monumento mais mutilado da literatura portuguesa do século XVI.
Isto é quase exacto, e nada há de estranho que nele se não tenha incluído a Obra
da Geraçã humana, admitindo que foi Gil Vicente o seu autor, provado
como está que lá faltam igualmente outras produções gil-vicentinas. Este é,
parece-nos, um argumento que depõe a favor da tese de Révah». In
Justino Mendes de Almeida, Estudos de História da Cultura Portuguesa, Academia
Portuguesa da História, Universidade Autónoma de Lisboa, O Pernix Lysis,
Lisboa, 1996.
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