domingo, 7 de setembro de 2014

A Bela Poesia. 1957 1971. Obra Poética. Salette Tavares. «A face ficou-te gume de faca e a lágrima era água de um lado e sal do outro. A cara virou o perfil para o perfil e ficou borrão estampado, tu a contares-me a terra onde fizeram a barragem…»

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Toma o ouro que o poeta dá. In Sallete

Carta a Pedro Sete
Pedro
«É, com alegria que veio surgir sobre o papel os traços da minha caligrafia, há tanto tempo sem escrever, há tanto tempo sem uma pausa na alma para o dentro a dentro que me deixa penetrar no universo mágico que entre meus eus a poesia tece. Escrevo-te hoje pela primeira vez. Em teus poemas referes-te à minha presença, chamas-me a tua companheira, companheira que identificas com a poesia. No acto de reflexão que sou, não fosse o acaso deste agora, não me aconteceria pôr em papel branco com a minha letra nada disto que tantas vezes tem sido núcleo da minha meditação sobre poesia, sobre a juventude necessária que a poesia é, sobre o poeta que o jovem deve ser e, sobretudo, sobre o jovem que o poeta é. Antes do teu chegar já eu te dizia o mistério que te ia procriando, a voz com que te queria marcar poeta, acostumar-te às maçãs amargas, ao sal da lua e às lições diárias da rua.
Vi-te fechar no abrir de um segundo o mar intenso, o fervente febril que te suspendeu rigor de seco quilha entre sinais. Tão sós a sós cantámos a certeza. Tua palavra minha boca a transbordava. Sem nada se dizer um eco me respirou mais pele de flor menina. Então ouvimos: arrasta e leva contigo a lama que rastejas, o saibro que te rasga a carne. Arrasta e que teu ventre rasgue por quantas vezes foi rasgado e ventre. As matinas tocaram a finados. Porque o barro era mole, porque o espírito nos dizia em todas as coisas o seu nome, vimos-te, ó ser único entre tudo o que foi e está para ser. Arrasta, voa teu sonho e cai vertical no abismo limite do que acaba e começa, no agora em trânsito que a aurora anoitece, segundo lince de tempo que não repete, capacho do azul ao entardecer, sempre do nunca adormecido ao colo, fechando o dentro impossível de apanhar, barco escalando a montanha, vale da cordilheira vê, olha, toca, ouve a semente que se despede da folhagem na altura.
A face ficou-te gume de faca e a lágrima era água de um lado e sal do outro. A cara virou o perfil para o perfil e ficou borrão estampado, tu a contares-me a terra onde fizeram a barragem: uma velhinha aos quarenta anos, as casas sem chaminé, sem janelas e a tristeza e a miséria das crianças. Sem pão, sem ar, sem luz. Escuro quadrado a porta é janela e chaminé. Uma electricidade que passa por cima e não se colhe porque não é um jeito que a apanha, é um dinheiro e ali o desconhecem. A lama do caminho é funda, não se pode pousar o pé, enterra-se. E nem a cebola germinou. A fome parou os olhares que murchos meditam. Conheço a fome. Conheço o silêncio, os olhos que ocupam a casa inteira. O pânico perante o movimento. A dor do ligeiro mexer. É a morte pairando a ceifa serena em cada dia que passa. Sem hospital, sem um copo de água quando a chuva acaba de chover. Sem força para levantar os pés, para os arrastar até não se sabe onde, pois o próximo tão próximo é longe». In Salette Tavares, Obra Poética, 1957-1971, Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1992.

Cortesia de Aportugueses/JDACT