sexta-feira, 26 de setembro de 2014

As Alegres Canções do Norte. Alberto Pimentel. «… ora vai tu, risca ao lado e a canninha verde, parece trazer comsigo e mostrar-nos de longe, voando sempre, um trecho da fulgida paizagem do Minho, aberta em sorrisos, suspensa das suas azas sonoras»

jdact

De acordo com o original

Génese das canções
«O povo das nossas províncias do norte é, pelas condições da sua mesma existência, resignado, trabalhador e pacifico. Por isso as suas canções são alegres como as dos pássaros : reflectem, sobre um nítido fundo tradicional os aspectos luminosos, variados, amoraveis, da natureza. O Minho, a província mais septentrional do paiz, deve servir-nos de typo na caracterisação psychologica do povo do norte. Foi n’esta província que primeiro pulsou a alma portugueza. Foi aqui, n’uma nesga de chão desmembrado da Galliza, que se desenrolaram os mais remotos preliminares da nossa independência. É, portanto, aqui, que devemos procurar os vestígios primitivos d’esse espirito de nacionalidade, que depois de nos ter feito livres nos tornou grandes. Por cima do rio Minho passaram as correntes poéticas do sentimento seguindo o caminho das correntes éthnicas, e trazendo um vago perfume d'esse longínquo lyrismo provençal, que depois se aristocratizou nos cancioneiros dos trovadores gallecio-portuguezes. O povo recebeu a impressão trovadoresca, identificou-se com a essência subjectiva das gaias canções, especialmente com a intenção amorosa dos cantares d’amigo, mas repelliu o metro d’arte maior, porque a versificação nasce espontaneamente do génio rythmico da lingua.
Os aspectos da natureza, as condições mesologicas, favoreceram a acclimação de todos os elementos ideaes e pittorescos; dir-se-ia que os montes e os valles abriram carinhosamente os braços para acalentar com maternal desvelo as primeiras emoções da alma nacional. Quando, batendo as azas, chega a Lisboa uma canção que derrama gorgeios, que vive, palpita e parece bailar no azul, podemos affirmar que ella chega do claro rincão do Minho, como ave de arribação que emigra cantando. Sempre que passa sobre os muros da capital, essa canção em viagem, vibrante de folia aldeã ou de vigor choreograpbico, como por exemplo, … ora vai tu, risca ao lado e a canninha verde, parece trazer comsigo e mostrar-nos de longe, voando sempre, um trecho da fulgida paizagem do Minho, aberta em sorrisos, suspensa das suas azas sonoras. É um relance de sol que passa e foge; que não chega a penetrar no repertório alfacinha, onde apenas o Fado se enthronisou com todo o seu cortejo de soluços e lagrimas. O povo de Lisboa não se affeiçôa ás canções do norte, que se lhe afiguram vindas de outro paiz muito differente; e a Canninha verde, quando dançada no palco pelas actrizes da capital, é um producto exótico, desnaturado, amortecido.
Para comprehender e sentir as canções do norte é preciso ir colhêl-as na origem. Então, a par dos factores éthnicos, a própria natureza se encarrega de explical-as. A terra é verde e fecunda; produz sorrindo. Paga bem a quem a trabalha. A agua corre saltitante no valle e no monte. Os rios são crystallinos e amenos. A vegetação baralha, n’uma prodigalidade magnificente, todas as graduações da verdura. Só Deus podia ser o joalheiro capaz de compor unicamente com a esmeralda um collar de tão diversos tons, substituindo a monotonia pela variedade. Aonde não chega a seara nem a vinha, está o pinheiral avelludado, o mato florido. No cimo dos montes, onde o granito toma o logar do húmus, a aridez da pedra é adoçada pela ermidinha branca, cheia de luz e de fé. A propriedade, dividida e pequena, hão cria invejas nem ódios. Parece sujeita a um regime de igualdade, que produz este notável facto económico: não haver ricos, nem pobres. Ha apenas proprietários remediados. As grandes herdades do Alemtejo, os grandes vinhedos da Extremadura não chegam a ser compreendidos pelo lavrador minhoto, que constantemente ouve cantar o gallo no quintal do visinho. Frequentemente succede encravarem-se umas nas outras as terras de differentes donos, em retalhinhos, em fracções, n’uma paz octaviana, que só costuma ser perturbada pela disputa sobre a agua de rega. Estes litígios originam-se na própria promiscuidade das terras, que se confundem e misturam, de modo que se não sabe bem quando a agua é d’este proprietário ou de outro, porque parece ser de todos». In Alberto Pimentel, As Alegres Canções do Norte, Livraria Viúva Tavares Cardoso, Typographia Pinheiro, Lisboa, ML 2548P55A43X, 1905.

Cortesia de LVTCardoso/JDACT