Como Luís de Camões teria obtido o grau de bacharel latino
«A profunda reforma do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra começou em 1527, quando Luís de Camões contaria
três ou quatro anos de idade. Ao mesmo tempo que os cónegos regrantes se
sujeitavam à clausura claustral, desenvolviam o ensino por meio de mestres que
estudaram em Paris, o que tornava o colégio desse mosteiro o centro mais importante
de cultura da mocidade lusitana de então. Segundo Teófilo Braga, foi este progresso pedagógico que determinou
João III a trasladar a Universidade de Lisboa para Coimbra em 1537, suavisando a violência de aplicar
uma grande parte dos rendimentos de Santa Cruz aos gastos da Universidade.
Durante o lapso que vai de 1527 a 1539, sucederam-se por períodos de três
anos, vários priores crasteiros e, nesta última data, findo o triénio de Miguel
Araújo (1536 a 39),o monarca, querendo honrar o mosteiro que muito
cooperara com a Universidade com o prestígio do seu ensino e os rendimentos da
sua comunidade, concedeu então o título de Cancelário da Universidade de
Coimbra aos Priores crasteiros de Santa Cruz. Ora, precisamente
em 5 de Maio de 1539, no capítulo geral
dos conventos augustinianos, Bento de Camões, pela sua ilustração e
virtude, foi eleito Prior Geral, do que resultou vir ele a ser
automaticarrrente o primeiro Cancelário daUniversidade, para muita satisfação do
rei João III. O encadeamento destes sucessos exerceu com certeza bastante
influência na vida escolar de Luís de Camões.
Teria sido entre 1537 e 39, contando ele treze ou catorze anos,
o máximo, que o jovem iniciou os seus estudos mais sérios, com vista à obtenção
do grau de Doutor em Letras ou, mais provàvelmente, de Bacharel Latino, como mais
tarde viriam a classificá-lo. É de presumir que já sua mãe se tivesse retirado
para a companhia do marido, em Lisboa, deixando o filho totalmente entregue à
austera vigilância do tio. A coincidência de ser este o Cancelário da Universidade
só beneficiaria o moço estudante, não por lhe criar uma situação de favor, mas
por lhe fazer sentir a sua autoridade e o orientar superiormente nos estudos. O
mosteiro de Santa Cruz possuía então uma das bibliotecas mais ricas da Europa,
se não do mundo, e o douto Cancelário não deixaria de
indicar ao sobrinho as suas peças mais valiosas que solidamente o instruíssem acerca
dos melhores clássicos, desde os Gregos e Romanos, Arábicos e Hebreus.
À margem das lições integradas no programa do curso, Luís Vaz devia
ter-se enfronhado na leitura dos mais famosos autores de outrora, conforme o denuncia
através da sua obra tão rica em erudição. Filósofos, Historiadores, Geógrafos,
Poetas da Antiguidade poucos teriam escapado ao seu olhar curioso e à sua
inteligência sedenta de saber. Essa sede de conhecimentos teve a mitigá-lo o
mais evoluído corpo docente que, por feliz coincidência, leecionou em Coimbra exactamente
nos anos em que ele fez os seus estudos mais importantes. Esses mestres,
apelidados de parisienses, foram Pedro
Henriques, Gonçalo Álvares, Vicente Fabrício, os gramáticos João Fernandes,
Belchior Beliago, Inácio Morais, Máximo Sousa e Heliodoro Paiva. Com eles,
a seguirem o exemplo dos famosos Gouveias gue tanto
prestigiaram a cultura portuguesa em França, lidou Luís de Camões durante o seu
curso de Humanidades, ao mesmo
tempo que seu tio Bento exercia o alto cargo de Cancelário desde 1539 a 1542.
Das importantes funções de Cancelário podemos fazer uma ideia
através de alguns passos da Carta régia de 15 de Dezembro de 1539, em que João III outorga esse
cargo aos Priores de Santa Cruz. Eis um trecho bem significativo:
- E mando que das portas a dentro do dito Mosteiro e da sua Capela de São João, e de todos os seus colégios, a saber, do Colégio de São João e do Colégio de Santo Agostinho e do Colégio de Todos os Santos, o dito Padre Cancelário haja e tenha toda a jurisdição em os Mestres, Estudantes e Oficiais que em eles lerem, estudarem e servirem. A qual jurisdição se entenderá em os Mestres somente em o que tocar às lições e falta dos lentes, e em o fazer dos exercícios e disputas, e em as horas que hão-de ler, e em lhes darem as licenças para irem fora, e para lerem outros por eles, e em lhes mandar pagar seus salários, e em os mandar multar em eles quando em as sobreditas coisas lhe forem desobedientes. E em os Estudantes e Colegiais em lhes dar licenças, e em os repreender e emendar, quando forem escandalosos, mal ensinados ou desonestos, e em as coisas que dão turvação a bem estudar.
- E quando acontecer o dito Cancelário ser ausente, ou ter outro impedimento, tenha suas vezes em o dito ofício Religioso que as tiver em a governança do dito Mosteiro, e pela dita maneira hei por unidos e incorporados, os ditos Colégios com a dita Universidade; e mando que daqui em diante tudo seja e se chame uma Universidade, e todos juntamente hajam e gozem de uns mesmos privilégios, assim dos que até aqui lhe são concedidos, como de todos os que ao diante se concederão à dita Universidade.
É de supor que Luís de Camões fora um bom estudante, embora, pelo
temperamento inquieto que revelaria mais tarde, não se exclua a hipótese de ter
colaborado, ou mesmo tomado a iniciativa, nas diabruras a que os escolares se
entregavam com frequência. Esse espírito buliçoso e irreverente, que ainda hoje
se mantém por tradição, apesar de mais atenuado, era, aliás, comum a todos os
grandes centros estudantis da Europa e até por vezes, por cá se imitavam as
facécias que se verificavam em Salamanca, Paris, Bolonha ou Mompilher». In
Mário Domingues, Camões, A sua Vida e a sua Época, Livraria Romano Torres,
Lisboa, 1968.
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