quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Fogos. 1935. Prosas Líricas. Marguerite Yourcenar. «… queimado por mais fogos do que aqueles que ateei, não nos faça ver por detrás deste amante desesperado o imenso braseiro de Tróia, e sentir naquilo que para as pessoas de bom gosto não parece mais do que um reles equívoco…»

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«… Essa tendência que persiste ou renasce em cada época em todas as literaturas, apesar das sensatas restrições puristas ou clássicas, obstina-se, talvez quimericamente, na criação de uma linguagem totalmente poética, na qual cada palavra carregada com o máximo do sentido revelaria os seus valores escondidos, tal como debaixo de certas iluminações se revelam as fosforescências das pedras. Trata-se sempre de concretizar o sentimento ou a ideia, sob formas que se tornam elas próprias preciosas (o termo é revelador em si próprio), como essas gemas que devem a sua densidade e o seu brilho à pressões e à temperatura quase insustentáveis pelas quais passaram, ou ainda em obter da linguagem as sábias distorções das ferroadas do Renascimento, cujos complicados ornamentos foram inicialmente ferro em brasa. O que de pior se pode dizer destas audácia verbais é que aquele que a elas se entrega corre permanentemente o risco do abuso e do excesso da mesma maneira que o escritor que se dedica aos litotes clássicos corre incessantemente o perigo da elegância seca e da hipocrisia.
No mau sentido da palavra, naquilo que eu chamaria voluntariamente o expressionismo barroco, foi que nove vezes em dez o poeta cedeu com efeito ao desejo de espantar, de agradar ou de desagradar a qualquer preço; acontece por vezes também que é incapaz de ir até ao âmago da ideia ou da emoção que o poeta lhe oferece, e na qual ele não vê, erradamente, mais do que metáforas forçada ou frios conceitos. Não é culpa de Shakespeare, mas sim nossa, que, quando o poeta compara o seu amor pelo destinatário dos Sonetos a um túmulo pavimentado com os troféus das suas antigas paixões, não sintamos flutuar por cima de nós todos os estandartes da época elisabetina. Não é culpa de Racine, mas nossa, que o famoso verso pronunciado por Pirro, apaixonado por Andrómaca, … queimado por mais fogos do que aqueles que ateei, não nos faça ver por detrás deste amante desesperado o imenso braseiro de Tróia, e sentir naquilo que para as pessoas de bom gosto não parece mais do que um reles equívoco indigno do grande Racine, o obscuro arrependimento do homem que foi impiedoso e começa a saber o que é sofrer. Esse verso onde Racine, por um processo frequente nele, reanima a metáfora dos fogos do amor, já gasta no seu tempo, voltando a dar-lhe o brilho das verdadeiras chamas, leva-nos à técnica do calemburgo lírico, que faz, por assim dizer, desenhar com a mesma palavra os dois ramos de uma parábola. Se, para voltar a fogos, Fedra, para a sua descida aos infernos, aproveita ramos que são ao mesmo tempo os de Charon e os do metro, é que o afluxo humano que redemoinha às horas de ponta nos corredores subterrâneos das nossas cidades é para nós talvez a imagem mais aterrorizadora do rio das sombras; se Tétis é ao mesmo tempo o mar e a mãe, é porque este equívoco, que de resto não faz sentido senão em francês, funde num todo o aspecto duplo de Tétis mãe de Aquiles e de Tétis divindade das vagas. Poderia multiplicar os exemplos, que em fogos valem o que valem». In Marguerite Yourcenar, Feux, 1935, Éditions Galimard, 1974, Difel, Lisboa, 1995, ISBN 972-29-0315-2.

Cortesia Difel/JDACT