«(…) Desses
contactos acreditamos que derivassem naturais benefícios para Portalegre,
cidade que teve no rei João III o seu verdadeiro
rei, a quem tanto ficou a dever, e no bispo Jorge um indubitável e
dedicado amigo e servidor. Trinta e dois anos aqui viveu o bispo, tempo
demasiado longo para uma vida estéril, pacata, imóvel, perfeitamente inconcebível
no homem de fibra e de ânimo forte e decidido que nele se adivinha. Para além
de ter cuidado da publicação das Constituições
do bispo D. Pedro Gavião e da elaboração dos Estatutos de S. Bernardo de
Portalegre, vinte anos lhe sobejaram para acompanhar as obras do convento e
do seu precioso monumento funerário. Escasseia documentação que permita
conjecturar o que teria sido, de facto, a
vida deste homem em Portalegre. Mas bastará atentar na qualidade da
obra que nos deixou no domínio das artes para compreendermos que se trata de um
espírito culto e iluminado, sentindo e pressentindo a força e a filosofia da
época, a Renascença em plena pujança, com o exemplo do rei
mecenas a tentar naturalmente também as suas inclinações, ele, a quem a bolsa
farta não preocupava. Com os mestres, artistas e peritos ocupados na obra total
de S. Bernardo, desde os arquitectos aos decoradores, decerto se entreteria; e quantos não terá ajudado?
Se
entendeu por bem fazer em Portalegre tão boa aplicação dos lucros de Alcobaça e
se os seus estudos de Paris e de Roma não foram de facto em vão, ele, que já na
abadia deixara sinal vivo do gosto e respeito que tinha pelas artes maiores e
pelos artistas, deve-se-lhe, p. ex., o enriquecimento em manuelino e reforma
do gótico remoto do Mosteiro, também dessa forma serviu a Igreja e serviu os
seus próprios gostos. Não foi, porém, com o gótico ou o gótico-manuelino em
Portalegre. Foi sim, o Renascimento, ainda que, conforme as palavras de
Jorge Rodrigues e Paulo Pereira, nessa construção a teoria da luz revela o escopo do programa
arquitectural manuelino ‘e’ as coberturas são nervadas (…) fazendo uso das da
ogiva, assim como noutros pormenores que correspondem à primeira
campanha das obras se manifeste a influência anterior do gótico final. Jorge,
na paz tranquila do pétrio túmulo, contempla aquele sagrado encontro,
intencionalmente encomendado, por razões pessoais de fé, de sentimento e
de significado, neste caso por se tratar de tema muito do gosto
humanístico dos séculos XV e XVI, pela imagem de esposa ideal em oposição à mulher feiticeira, tentadora e pecadora.
Santa Ana
era o exemplo representado e ensinado da esposa que assegura a prosperidade material e que respeitava o marido na ausência,
enquanto ocupado com os seus negócios, ideal que prosseguiu aceite até ao
século XVII. Depois impor-se-á o dogma da Imaculada na figura sagrada da Virgem
Maria, sua filha, concebida sem pecado. Este culto de Santa Ana,
fortalecido desde os finais da Idade Média, tinha suas raízes nos Evangelhos
Apócrifos (ou secretos,
significado mais correcto o correntemente atribuído de errados ou não canónicos),
dos quais o Protoevangelho de S. Tiago, o
Menor, mais ou menos dos anos 150
da era cristã, é o mais antigo dos evangelhos ditos de ficção e o que mais terá
influenciado a imaginação dos artistas renascentistas.
A Porta Dourada, ainda hoje existente, só será aberta no fim do
Mundo; é um símbolo forte, por isso mesmo escolhida para o encontro dos pais de
Maria, reconciliados no desgosto de não terem descendentes, e que ali se
juntaram depois do anúncio que a cada um fizera um anjo. Soube assim, Ana que iria tornar-se,
apesar da sua idade avançada, a mãe da Mãe de Jesus Salvador, o que, na
verdade, aconteceu nove meses depois, história, mais tarde e sucessivamente,
acrescentada em outros e mui variados pormenores, tendo servido de inspiração
aos artistas. Estas são razões suficientemente justificadas da utilização de um
tema tão complexo e tão carregado de simbolismo, assim como, do mesmo modo, se
justifica a presença esculpida de outras figuras do agiológico cristão (S.
Simão, Santa Helena, S. Miguel, S. Jorge e os fundadores da Ordem
de Cister S. Bento e S. Bernardo) e a exaltação de Nossa Senhora
representada em glória na edícula superior do majestoso painel». In Ibn
Maruán, Manuel Inácio Pestana,
Revista Cultural do Concelho de Marvão, Coordenação de Jorge Oliveira, nº 4,
1994.
Cortesia da CM de Marvão/JDACT