Cogito
«(…) Donaciana apenas lamentava o seu brilho de fosforo encadeante. Pobre
mãe, pensou Astor. A doença do pai e o castigo que a avó lhe infringiu, lavar a
enorme, desmesurada panela do banquete, tarefa árdua para muitos, muitos anos
de esforço, haviam-na transformado numa velha decrépita. Quem lhe reconhecia a
graça na remendadíssima sotaina de algodão, nas
madeixas em flocos de cabelo branco? Nada há de obscuro, oculto,
invisível, em certas criaturas. A mesquinhez da forma como, às vezes, se
concretiza a vida é cruel, pensou Astor. Pobre mãe, enfeitiçada na mobilidade,
insegura duração de um trajecto sem tempo. Donaciana, tendo recuperado o marido
para o leito conjugal, dava, apesar de tudo, graças pelo seu regresso e encomendava
rezas por tão estranha ocorrência. Vivemos rodeados de gente absurdamente
agradecida, pensou Astor. Grata por grilhetas.
Agora, há três dia e três noites que Agnelo não saía do laboratório,
encantado decerto com alguma promessa de vitória sobre os fantasmas
escorregadios que perseguia. Astor abandonou a janela. Entrou na cozinha e não
se surpreendeu com Dulcineia, que recitava palavrões obscenos em voz baixa.
Assim fazia todas as manhãs. Astor serviu-se de pão. Tirou um frasco de compota
de cenoura do frigorífico e uma faca de madeira de um complicado móvel de
cozinha com tampo de mármore e cabides para pegas atarrachados numa das portas.
Voltou à sala de jantar. Sentou-se à cabeceira da enorme mesa deserta e comeu,
compassadamente. Deixou, depois, o frasco de compota, a faca de madeira e um grupo
desleixado de migalhas em cima da mesa. Que saudade, no futuro, da singeleza
daquelas banalidades. Voltou a janela e ergueu um pouco, entre os dedos da mão
esquerda, a veneziana.
O quintal mudara de aspecto. Meia centena de pessoas fazia bicha diante
de uma cadeira de baloiço, onde uma velha de vestido de veludo verde se
movimentava mansamente. Era uma velha desempenada, de ar arguto e firme, as
costas muito direitas e os cabelos grisalhos bem arranjados e vistosos. A avó
de Astor. Quase benigna numa primeira e desassombrada vista. Dir-se-ia que
escutava cada qual com a mesma atenção. A cada um que avançava, concedia
conselhos e qualquer objecto, a seu ver recomendável, que tirava de um dos dois
enormes cestos de vime entrançado que a rodeavam. Dois cestos muito altos,
guardados a coberto de um manto vermelho, O seu manto vermelho, pensou Astor e
procurou na cada vez mais longa bicha de peregrinos alguma cara reconhecida daqueles
caminhos. A avó escutava, balouçando a cabeça, deitando os pensamentos num
navegar de cárabo ressequido. Havia gente de todas as idades e aspectos, pensou
Astor. A avó parecia distanciar-se cada vez mais na sua fama. Chegou-se à avó uma
mulher com uma capulana colorida; e os seus pés negros, descascados de pele e
nús, sobressaíam na relva molhada do quintal. A mulher fez uma vénia à avó,
deitou um galo vivo para dentro do cesto de vime, à direita, e desatou-se num
rol de queixumes ensaiados cuidadosamente. A velha escutou-a com demora. Mas
parecia indiferente, baça. A capulana volteava, deitava rasgos de mulher aqui e
acolá, brechas de males sofridos caíam nos ouvidos dos presentes. Astor, na
trincheira da janela, adivinhava a aflição da capulana e seu recheio. Via-a
gesticular, metódica, semelhante a raios pendurados num poste de alta tensão. A
velha, impaciente, fez um gesto. A negra deixou de estrebuchar, despediu-se do
galo vivo e partiu em sossego, tão diferente do que fora instantes atrás. A avó
de Astor tirou o manto vermelho de cima dos cestos e atirou-o com juventude
sobre os ombros. Da bicha adiantou-se logo um engenho de homem, magro e sombreado,
com uma gigantesca gadanha em riste. Trazia nos olhos um leve bréu, uma
distância sofrida e antiga. Ofertou a gadanha. E há nos actos mudos confissões
sonoras. Antes que abrisse a boca, a velha tirou do cesto, à sua esquerda, um frasco
de vidro e do frasco um molho de ervas. Estendeu as ervas na palma da mão
aberta e o homem tirou-lhas com sofreguidão. Em seguida, o homem transpôs o
portão do quintal. Mas não levava a sombra que trouxera». In Alexandre Honrado, O Príncipe
Perdido, colecção O Chão da Palavra, Vega, Lisboa, 1986, ISBN 978-972-699-155-7.
Cortesia de Vega/JDACT