«Um
combatente do lado de António, Prior do Crato, 18º monarca de
Portugal, faz o seguinte relato: Sabendo o duque de Alba por espias
e ruins portugueses, como grande parte da gente da cidade se recolhia a ela a
dormir em suas casas, acometeu de súbito o arraial do Senhor D. António
trabalhando de entrar pela ponte de Alcântara, assim para lhe inquietar a
gente, como ganhar naquela revolta contra os moinhos de
vento, um outeiro que ficava sobranceiro ao arraial do inimigo e colocou
nele a sua artilharia.
Em amanhecendo, mandou o duque ao Prior seu filho, que cometesse o arraial pela
parte aonde a artilharia estava prantada. O Prior ajudado da sua artilharia
cometeu o arraial com a sua gente de cavalo e outra de escopeta;
a gente de cavalo portuguesa, que era muita e boa: mas molestados da artilharia
e escopetaria do inimigo viraram muitos as costas, sem aproveitar nada o
esforço que lhes punha o Senhor D. António. Fugindo os de cavalo, foi parte
para que fugisse também a gente de pé. «O Senhor D. António, vendo
inclinar-se a vitória à parte do inimigo, dizem que se meteu com alguns fidalgos
principais no mais perigoso da batalha como homem que não queria mais vida e
pelejando valorosamente lhe aconselharam os seus, pois que a vitória estava já
declarada pela parte contrária se recolhesse à cidade, o que ele fez ferido de
duas ferias ruins na cabeça, das quais uma lhe fez um cavaleiro luzido dos
contrários, que logo ali foi morto pelos fidalgos que o acompanhavam e a outra
lhe fez um fidalgo português dos seus mesmos, que foi de todos bem conhecido. E
por aqui se verá com quantas traições se alcançou esta vitória contra o Senhor
D. António». In Recordando a Batalha de Alcântara.
Violência.
Um fresco pintado em Génova
«Ficamos
sufocados. Quando o nosso olhar se defronta com a abóbada do grande salão do
palácio Spinola de Génova, o que lá encontramos é uma sublime representação do Cerco de Lisboa pelo duque de Alba.
Não obstante os eventos evocados pela pintura terem ocorrido em Agosto
de 1580, o seu autor, o também genovês Lazzaro Tavarone - o Lázaro
Tavarón das fontes espanholas, realizou-a entre 1614 e 1615. Desde então,
e apesar da sua magnífica localização e execução, a obra passou quase
despercebida aos historiadores dedicados ao Portugal hispânico. A história
deste livro principiou, na realidade, quando uma investigação me levou
casualmente até à referida imagem, em Junho de 1997. Inicialmente, a surpresa
não teve relação com a natureza genovesa da pintura: há décadas que a república
de São Jorge, como também se sabe, mantinha laços estreitos com Espanha e, no
que respeita a Portugal, fora outro genovês, Girolamo Franchi Connestagio, o
autor do mais famoso relato sobre a incorporação da coroa lusa na monarquia dos
Áustrias. A sua polémica Historia dell’unione del Regno di Portogallo
alla Corona di Castiglia, surgida em Génova em 1585, atravessaria os
sessenta anos da união dinástica hispano-portuguesa como uma espécie de bíblia
dos factos de 1580, não obstante para
alguns nunca ter deixado de incluir passagens heréticas de absolvição
impossível.
De
resto, Tavarone chegara a Espanha como discípulo de Luca Cambiaso, outro
elemento do grupo de mestres lígures que Filipe II conseguiu reunir para
decorar o Escorial, por volta de 1583.
Em suma, pode ainda contemplar-se o seu maior contributo na Galeria das
Batalhas do palácio-mosteiro. De regresso a Génova em 1591, não deixou de acumular fama até à sua morte, no ano de 1641, graças às decorações com que
revestiu alguns dos enormes e sumptuosos palácios genoveses, como o da família
Grimaldi, hoje palácio Spinola, onde imortalizou o cerco de Lisboa por Alba.
Afinal, esta fora uma das muitas proezas ao serviço do Rei Católico em que participaram
alguns membros do clã, como Francesco Grimaldi, no comando de forças de
cavalaria. Voltaria a colaborar com o
Prudente mais tarde, mas dessa vez de modo um pouco menos majestoso, embora
muito genovês: como aprovisionador de galeras. Falecido em 1606, o seu filho Tomaso aproveitou a
oportunidade de decorar o palácio do pai para proclamar e apoteose dos seus outros
antepassados em torno da cena portuguesa. Os vínculos que já existiam entre a
sua família e outras não menos notáveis da hispanófila nobiltà vecchia genovesa, como os Spinola e os Pallavicino,
permitir-lhe-iam a falta de modéstia, sobretudo frente aos Dória, seus verdadeiros
rivais e também colaboradores do monarca espanhol. Entre outras coisas porque
aquilo de que se tratava era de aproveitar a aliança com Espanha para fazer
política na república, através do fortalecimento do próprio partido. Em 1613, um ano antes de Tavarone iniciar
o seu fresco, Tommaso Grimaldi conseguira o tão ansiado dogato, o cargo de
governador de Génova, posição a que o seu pai aspirara sem êxito. A notícia suscitou
a alegria do enviado espanhol em Génova, que se apressou a informar Filipe III
de que o novo doge não procurava outro
bem que o de Vossa Majestade, sendo de resto ele e toda a sua casa
particularmente aficionados da Real Coroa de Vossa Majestade». In Rafael
Valladares, A Conquista de Lisboa, 1578-1583, Violência Militar e Comunidade
Política em Portugal, Texto Editores, Alfragide, 2010, ISBN 978-972-47-4111-6.
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