sábado, 11 de outubro de 2014

A Hora Universal dos Portugueses. Pedro Veiga. «A burguesia portuguesa, vencendo a aristocracia em Aljubarrota, ao mesmo tempo que com alta visão dos seus interesses económicos e da sua capacidade comercial sustentava a causa do Mestre de Aviz»

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«(…) Por outro lado, a criação do Estado sobreposto às classes privilegiadas, embora daí resultasse o imediato reforço da autoridade real, traz consigo, também, a formação duma consciência nacional, que à burguesia particularmente se deve. A burguesia tendo surgido da Idade Média por reacção às fortes estruturas do passado, dominado pelo signo militar, e, por consequência, pelo espírito de autoridade e de submissão que é seu apanágio, criou naturalmente outros valores ou deu-lhes um impulso novo. Assume então foros de factor político aquilo que nela é representativo, a posse dos instrumentos de troca, e foram esses instrumentos de troca que puseram os povos, até aí isolados em verdadeiros mundos fechados, em mais estreita comunicação, como foram eles, igualmente, o veículo que trouxe para os planos superiores do estado as ideias romanas da soberania e as garantias cívicas que ou nelas se continham ou delas derivavam. Aliás, a nova ordem de coisas altera profundamente o conceito que de classe concebia e Idade Média. À clerezia e à nobreza não foi apenas a posse dos bens patrimoniais que deu homogeneidade e consciência. Deve considerar-se mesmo que não eram eles que principalmente a definiam. E porque eram de natureza espiritual ou política os valores que as distinguiam, essas classes se apresentam, de certo modo, exclusivistas e impenetráveis. Esta é a razão por que, com mais propriedade, se deverão designar antes por Ordens.
Com os novos tempos, a força da burguesia reside essencialmente no trabalho que acumulara e convertera em dinheiro. Os restantes valores perderam grande parte do seu prestígio, daí a burguesia nunca, na verdade, se ter estratificado e assumido a fisionomia de casta. Isso explica que ela seja contraditória por excelência e nos seus limites confunda os seus interesses com as classes que a tocam. Isso explica por que a burguesia é, de sua natureza, uma classe revolucionária enquanto que as classes que a precederam no governo da sociedade ou a que lhe poderá vir a suceder, foram ou serão classes conservadoras. Isso explica, finalmente, por que o espírito burguês é inquieto e perturbado enquanto que o socialista substitui à inquietação a positividade e às angústias da inteligência a força construtiva e o sentimento social da segurança. A burguesia portuguesa, vencendo a aristocracia em Aljubarrota, ao mesmo tempo que com alta visão dos seus interesses económicos e da sua capacidade comercial sustentava a causa do Mestre de Aviz, armando os seus navios e recrutando voluntários ingleses, criando um Estado aberto à actividade marítima, era esteio e voz do sentimento nacional de que a arraia-miúda, com uma clarividência profética, já se havia feito intérprete. Entre a valorização da Terra, isto é, a produção, e a actividade dos portos, isto é, o comércio, se dividiam os cuidados da Administração portuguese no século XIV». In Pedro Veiga, A Hora Universal dos Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu, Porto, 1948.

Cortesia de T.Sequeira/JDACT