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Por outro lado, a criação do Estado sobreposto às classes privilegiadas, embora
daí resultasse o imediato reforço da autoridade real, traz consigo, também, a
formação duma consciência nacional, que à burguesia particularmente se
deve. A burguesia tendo surgido da Idade Média por reacção às fortes
estruturas do passado, dominado pelo signo militar, e, por consequência,
pelo espírito de autoridade e de submissão que é seu apanágio, criou naturalmente
outros valores ou deu-lhes um impulso novo. Assume então foros de factor
político aquilo que nela é representativo, a posse dos instrumentos de troca, e
foram esses instrumentos de troca que puseram os povos, até aí isolados em
verdadeiros mundos fechados, em mais estreita comunicação, como foram eles,
igualmente, o veículo que trouxe para os planos superiores do estado as ideias
romanas da soberania e as garantias cívicas que ou nelas se continham ou delas
derivavam. Aliás, a nova ordem de coisas altera profundamente o conceito que de
classe concebia e Idade Média. À clerezia
e à nobreza não foi apenas a posse dos bens patrimoniais que deu
homogeneidade e consciência. Deve considerar-se mesmo que não eram eles que
principalmente a definiam. E porque eram de natureza espiritual ou política os
valores que as distinguiam, essas classes se apresentam, de certo modo,
exclusivistas e impenetráveis. Esta é a razão por que, com mais propriedade, se
deverão designar antes por Ordens.
Com
os novos tempos, a força da burguesia reside essencialmente no trabalho que
acumulara e convertera em dinheiro. Os restantes valores perderam grande parte
do seu prestígio, daí a burguesia nunca, na verdade, se ter estratificado e
assumido a fisionomia de casta. Isso explica que ela seja contraditória por
excelência e nos seus limites confunda os seus interesses com as classes que a
tocam. Isso explica por que a burguesia é, de sua natureza, uma classe
revolucionária enquanto que as classes que a precederam no governo da sociedade
ou a que lhe poderá vir a suceder, foram ou serão classes conservadoras. Isso
explica, finalmente, por que o espírito burguês é inquieto e perturbado
enquanto que o socialista substitui à inquietação a positividade e às angústias
da inteligência a força construtiva e o sentimento social da segurança. A burguesia
portuguesa, vencendo a aristocracia em Aljubarrota, ao mesmo tempo que
com alta visão dos seus interesses económicos e da sua capacidade comercial
sustentava a causa do Mestre de Aviz,
armando os seus navios e recrutando voluntários ingleses, criando um Estado
aberto à actividade marítima, era esteio e voz do sentimento nacional de que a
arraia-miúda, com uma clarividência profética, já se havia feito intérprete. Entre
a valorização da Terra, isto é, a produção, e a actividade dos portos,
isto é, o comércio, se dividiam os cuidados da Administração portuguese
no século XIV». In Pedro Veiga, A Hora Universal dos Portugueses, Tipografia Sequeira,
Prometeu, Porto, 1948.
Cortesia
de T.Sequeira/JDACT