Moisés
«(…) molhado, rugas fundas por toda a face, dorme vestido, de ceroulas,
camisa xadrez, meias sujas suadas, e recorda, desperto, sem querer; o silêncio
da noite agora é grande, como quando ela morreu; a noite é morte, é a raposa velha;
morreu um ano, nem sequer um ano, depois de nos juntarmos; os nove meses, foi
aquela conta; albumina, disse o doutor, o raio que o parta; o crianço veio morto,
vil e cinzento, de pescoço torcido; mas não interessava isso, desde que ela
vivesse; eu sabia; tinha dez possibilidades de escapar, contra noventa; foi-se;
pronto, não sofre, que havemos de fazer?,
uma noite como esta, deserta e aluada; quando ela morreu estávamos sós os dois,
sós como quando amámos; ela deu um grito e em seguida um ai, contente,
levezinho, resignado, quando rompi aquilo, nessa noite; não na outra; suava,
tinha a cara alagada, cheia de febre, dores, se calhar pena de morrer; fiquei
de todo abandonado; andei sem eira nem telha, como um bicho, não voltei a conhecer
mulher, foi o diabo; então cá o morgado arranjou-me trabalho; cuidava dos
cavalos e vivia-se; mas os cavalos rancolhos tiveram de ser vendidos, e o breque
também; a cocheira ficou vazia, eu a dormir nela, verão e inverno, sem ninguém,
sentindo a falta da mulher, de um corpo ao menos que nos meus achaques me
valesse; hei-de morrer aqui em uma noite destas e só se lembram de mim ao fim
do outro dia, quando derem pela falta à hora de jantar, quando eu estiver feito
um carapau, lívido inteiriçado; na noite em que fugimos fomos para Vila Nova de
Milfontes, aí trabalhei de marítimo durante todo o verão; foi um imenso verão;
ela não tinha visto o mar, fechada na charneca entre azinheiras, disse que não
sabia de o mar ser assim tanta água em moitão, e quando tivemos que atravessar
a serra ela perguntou porque é que tinham feito uns cabeços tamanhos, que
calhando estavam ali desde que mundo é mundo, desde que Deus Nóssenhor lhes deu
amanho; calhando, pois, retorqui-lhe eu; o mar era qual se, à superfície,
tivesse posta uma colcha de gaze, uma rede de pesca, em cujas malhas as ondas
se afilassem; não me esqueço do mar; é como um espelho ou a eternidade; brilha,
reflecte, fere e encandeia; a terra castanha e seca, casas, cercadas de
planície; aí é que se sabe a soidade da sede (e o homem da terra respondeu e
disse: semeio sempre até que o sono chegue mas a mulher anda de pingadêra e a
ceia é velha, como a sede), Moisés
sonhou ou passou-lhe aquela nuvem pela vista, deu-lhe uma tonteira e os
sentidos parece lhe saíram da cabeça; as sobrancelhas pesam, grossas, sobre os
olhos abertos; há uma vontade, nele, de regressos; na sombra da cocheira, com
freios e estribos e selas de arção, a sua cara de malares e queixos salientes
parece rir ou sorrir, mas recorda: devagar fomos para o cemitério; passámos
pelos jazigos dos ricos, enfeitados, portas e janelas gradeadas, lamparinas,
flores, seguimos para o alto, a parte pobre, onde o vento vinha pelo meio das
ervas e desmoronava os torrões das covas rasas; aí, como eu um dia, aí foi que
ela adormeceu para sempre.
Estela
Sempre, de manhã, quando a casa se assusta de ruídos surdos,
insondáveis, desde o estalar dos móveis de madeira velha e o cair de estuque
sobre o forro do sótão, até ao repetido enervante voejar musicado dos mosquitos,
Estela pensa no homem, quando
acorda e o não vê na cama; uma vez por semana lhe escreve, à sexta-feira, para
chegar lá domingo: Anrique muito estimo que ao receber esta minha carta te vâ
encontrar de prefeita e feliz saúde na companhia dos nossos filhos que eu ao fazer
desta fico bem graças a Deus Anrique cá recebi a tua carta e nela vi todo
quanto me mandavas dizer e onde vi que tinhas todos ficado de saúde foi o que
eu mais estimei saber Anrique quando te eu mando procurar alguma coisa tu não
me respondes a isso eu tive aí uma carta que dizias que estavas todo contente e
eu mandei-te proguntar que me dissesses por que era e tu nem me deste resposta
agora com respeito a tu vires vem quando quiseres que eu nunca mandei na tua
vontade nem agora mando e nem quero mandar Anrique mandaste me dizer que
estavas doido da cabeça pois olha a minha todos os dias me dói de cada vez que
me alembro que inda faltam aquase quatro meses para o brão Anrique vê lá se te deixas
por aí imbroxar do Augustinho do Tanque que ele até é só para te desgraçar tu
fala aí à Joaquina que essa tem o milho ou se ela não to arranjar vai ao Luís
pastor que se ele não o tiver ele lá to arranja que quando era para o primo
comprar a casa ele também lho arranjava lá num pulícia amigo dele Anrique
estimo que tivessem boas festas do Carnavale nem me mandaste dizer se o Jacinto
passava aí o Carnavale ou se ia embora eu estava me mesmo alembrar que tu nem
comes pois olha toma seitido não tires o susteinto ao corpo inté quem não trabalha
precisa de comer quanto mais quem trabalha como eu na minha ideia intendo
graças a deus que eu tive pessoas que me disseram que tu aí que nem para ti ganhabas
mas tou a ver que chega para ti e para nós estavas para aí tu a dizer que me
pareceu pouco mas eu não me pareceu pouco parece me muito sabes que tive carta
do Artur vós talvez nem vos alembrastes dos anos dele como tu fizeste das
batatas que nei sequere me falaste nelas Anrique também te vou pedir uma coisa que
não aboreças aí os nossos filhos e tu ao Artur não o aboreças deixa o andar à
vontade dele que não se estraga por isso tu leva o com modo por bem tudo se
leva e com isto termino muitos beijos aos nossos filhos e tu de mim recebe um
apertado abraço desta tua mulher que se assina
Estela
a Deus»
In Almeida Faria, A Paixão, 1965, Editorial Caminho, O Caminho da
Palavra, Lisboa, 6ª edição, 1986.
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