domingo, 26 de outubro de 2014

O Poder e os Pobres. Laurinda Abreu. «… ao contrário das outras formas de assistência onde os particulares primavam, aqui, na assistência aos pestilentos, notava-se já a acção directa dos municípios e dos soberanos»

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Práticas de caridade e assistência nos alvores da Modernidade. Contextos sociais e políticos
«As profundas transformações das estruturas produtivas que começaram a ser desenhadas na Europa ainda nos finais da Idade Média, num cenário de recessão económica generalizada, penalizaram sobretudo os mais frágeis, que acorreram aos centros urbanos, à procura de trabalho, assistência ou esmola, agravando as dificuldades que também por lá se faziam sentir. Além das guerras, as epidemias, parte integrante do ciclo recessivo desencadeado em meados do século XIV, e presença recorrente desde a Peste Negra, desorganizavam a vida dos locais afectados, às vezes por longos períodos, e davam uma outra dimensão aos problemas económicos e sociais, mobilizando as autoridades para encontrar soluções para os enfrentar. Em Itália, as urbes que primeiro se depararam com a peste foram as mais céleres a desenvolver os mecanismos para a combater, uma acção que acabou por franquear as portas a novos grupos sociais, dando-lhes a sua oportunidade política. Na maioria dos casos, foram as autoridades locais que avançaram para a criação de esquemas sanitários inovadores, desenvolvidos à volta dos Conselhos de Saúde, suportados por uma burocracia já com algum grau de complexidade, que depois seriam adoptados em Inglaterra, França, Espanha e também em Portugal. Nestes países, porém, a primazia da condução das novas políticas de saúde pública pertencia à Coroa, ainda que a sua implementação fosse da responsabilidade dos municípios. O medo da disseminação das epidemias, num tempo de fortíssimas migrações, especialmente perturbadoras quando migrações de pobreza, legitimava a intervenção dos governos centrais, fornecendo-lhes argumentos para exercer um maior controlo sobre o território e os seus habitantes, procurando evitar o desenraizamento das populações, elemento limitador da arrecadação tributária e da incorporação militar, suportes do Estado que então emergia.
Em Portugal, o combate às epidemias foi assumido de forma inequívoca por Manuel I como um assunto do poder central. Partindo das disposições de 1471, foi este mesmo monarca quem, para enfrentar a peste que tão amiúde visitava Lisboa, instigou a câmara municipal a investir no desenvolvimento de um pelouro de serviço sanitário, impondo-lhe o estabelecimento de mecanismos de prevenção, contra a resistência dos vereadores, mais preocupados com os reflexos económicos das restrições do que com planeamentos a médio prazo. Foi também Manuel I que, em 1510, quis transformar em estruturas permanentes as Casas da Saúde que se estabeleciam em Lisboa cada vez que deflagrava um surto pestífero e, findo este, se desactivavam, lançando um projecto de um grande hospital, enviado ao município em 23 de Julho de 1520. Planeado (como vereis pela pintura de tudo) para 160 camas, além de oficinas e de outras casas necessárias, o novo hospital deveria ser construído em Alcântara, junto ao rio, por ser local afastado da cidade e também porque ali há muita água e lugar para os enterramentos e mais facilmente lá chegarem os materiais de construção. Orçamentado em cinco milhões de réis, o monarca propôs-se oferecer um milhão de réis, obrigando a câmara a idêntica comparticipação e a cobrar o restante à população, através de tributação extraordinária. Este encargo não deveria excluir ninguém, nem mesmo os tradicionalmente privilegiados e isentos do pagamento de impostos, dada a utilidade pública do empreendimento por esta coisa nos parecer tão necessária e proveitosa para toda a saúde dessa cidade e ainda de todo o reino.
A morte do rei, em Dezembro de 1521, viria a ditar o abandono dos planos para o hospital dos pestilentos, reflectindo as dificuldades da Coroa em manter as estratégias delineadas, o que não significou, porém, uma inversão do rumo traçado. Como concluiu Maria Pimenta Ferro, quando analisou as políticas de saúde pública medievais, ao contrário das outras formas de assistência onde os particulares primavam, aqui, na assistência aos pestilentos, notava-se já a acção directa dos municípios e dos soberanos. Era a estes dois poderes que competia gerir a saúde pública, que nada tinha que ver com a caridade, a qual fora até aos finais do século XV a grande base da assistência aos pobres. Era este o cenário à entrada de Quinhentos, mas os municípios tinham deixado de poder actuar de forma autónoma, e assim se conservariam pelo menos até 1804. Não era muito diferente o que se estava a passar com a regulação das profissões ligadas às artes curativas, reforma dos hospitais, apoio às crianças abandonadas e organização dos mecanismos de auxílio formal aos presos e aos pobres, subjacente na criação das misericórdias, áreas cuja tutela a Coroa chamava a si». In Laurinda Abreu, O Poder e os Pobres, As Dinâmicas Políticas e Sociais da Pobreza e da Assistência em Portugal, Séculos XVI-XVIII, Gradiva, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-616-596-3.

Cortesia de Gradiva/JDACT