As
Cartas
«(…)
Por outras palavras: é esse seu temperamento do dar o que mais convém a você e aos seus semelhantes? É ele o que
poderá dar a todos, incluindo você, maior
soma de felicidade? São tantas as questões que se levantam à volta
destes pontos que nem os poderemos expor todos: creio, pois, que seria
interessante conversarmos sobre alguns; e escuso de lhe dizer de novo, porque
você já mo tem ouvido centenas de vezes, que não tento resolver problemas: estou
simplesmente a levantar-lhos. E em primeiro lugar: deve ser a felicidade um critério? Para mim, só é questão a
felicidade própria, acho que a dos outros deve ser sempre um critério. Sempre? Se Beethoven, para compor
a sua música, se Dante, para escrever a sua poesia, se Tolstoi para viver a sua
vida, mais bela, mais dramática do que os livros, tiveram de esmagar felicidade
à sua volta, se como creio, uma coisa se não podia ter feito sem a outra, o que valeu mais? Devia também ter
sido critério para eles a felicidade
dos outros? Se um artista tem uma obra dentro em si, deve sacrificar os outros ou a obra?
Nenhum artista, é claro, hesitaria na resposta: a obra nunca se sacrifica. Os
artistas, estimado amigo, são uma espécie de lobisomens: obedecem a um fadário,
não podem deixar de sacrificar os outros em vez da obra; o que não é, nos
melhores, pequeno elemento para que sofram.
Mas você? É possível que
também tenha de escolher. Pode haver um momento na sua vida em que você tenha de
decidir-se entre a felicidade de alguém e a sua problemática filosofia. Se o
seu caminho é o de dar, o que é, lógico é que faça a dádiva mais alta: a de si
próprio, a da sua obra. Se o não fizer, você toma a outra atitude, a de
receber, que é sempre a do artista, considerado como criador; é evidente que,
realizada a obra, ele passa a ser o que mais dá. Mas como criador é egoísta; sempre
egoísta, o mais possível egoísta; talvez, de resto, o egoísmo seja
aparente; talvez o artista, em vez de dar a um, se esteja reservando para dar a
milhões. Em qualquer caso, num certo momento, é, egoísta; o que é duro. Você? Mudará de caminho? Sacrificará
a sua obra? Talvez o faça, é natural que o faça; o seu temperamento, de
facto, é o de dar: e dará. Depois de todos esses projectos de filosofia virá
uma existência pacata, uma vida vulgar, e uma saudade que o não deixará nunca,
estimado amigo: a saudade do que não foi;
a saudade, que tem tantos pais, do
menino que nunca se gerou. Mas deixe-me dizer-lhe o que penso: se você
sacrificar a sua obra, é porque a não tinha: havia apenas o desejo da obra, a
imaginação da obra, e nada mais. Porque se ela existisse! Você passaria por
cima de tudo, esmagando tudo, sem piedade, com horror, mas sem piedade, como os
couraceiros de Waterloo. Quem tem uma obra, a obra o tem; quem
traz mensagem a há-de ler perante o rei; arqueja, mas lê, sufoca, mas lê, e depois de ler cairá por terra,
mas já a leu. É a posse mais terrível de todas, a escravatura mais
completa, aquela que uma obra exerce sobre o seu criador. Se você a não fizer,
é realmente porque a não tinha, porque era fraco: a opinião dos seus amigos era
apenas uma ilusão dos seus amigos. Se você for um criador não dará a felicidade
nem a si nem aos que estão imediatamente à sua volta». In Agostinho da Silva, Sete
Cartas a um Jovem Filósofo, 1943, colecção Obras de Agostinho da Silva,
Ulmeiro, 1990, ISBN 972-706-217-2.
Cortesia
de Ulmeiro/JDACT