«(…)
Benjamin tem com Kafka o mesmo grau de parentesco que com Proust. Motto da sua metafísica poderia
ser a frase de que existe infinita esperança, mas não para nós, se acaso
Benjamin alguma vez se tivesse rebaixado a escrever uma frase desse tipo. Não é
por acaso que o centro do mais desenvolvido dos seus livros, o livro sobre o
barroco, esteja na construção da tristeza como última alegoria de transmutação:
a alegoria da salvação. A subjectividade que se precipita no abismo das
significações faz-se formal garantia do
milagre, porque anuncia a própria acção divina. Em todas as suas fases
Benjamin pensou simultaneamente o ocaso do sujeito e a salvação do homem. Isso
define o arco macrocósmico de cujas microcósmicas figuras esteve sempre
suspenso. Pois aquilo que é característico da sua filosofia é o seu tipo de
concreção. Do mesmo modo que o seu pensamento procura esquivar-se, com
renovados esforços e pontos de partida, ao pensamento classificativo, assim
também o nome das coisas e dos homens é para ele o protótipo de toda a
esperança: a sua reflexão procura reconstruir um tal nome. Neste aspecto parece
coincidir com toda a tendência geral contrária ao idealismo e ao epistemologismo,
que exigia que se alcançassem as coisas
em si em vez da sua forma mental e que encontrou a sua expressão académica
na fenomenologia e nas tendências ontológicas dela derivadas. Mas a posição de
Benjamin perante as oficiosas ideologias actuais do concreto mostra como as
diferenças decisivas entre filósofos se disfarçam sempre de matizes, e como o mais
irreconciliável é aquilo que parece semelhante. Benjamin penetrou na máscara
dessas ideologias do concreto e descobriu por detrás delas a face do conceito
extraviado, do mesmo modo que repeliu o conceito existencial-ontológico da
história como mero produto de destilação de uma dialéctica histórica evaporada.
A crítica e compreensão do último Nietzsche, para o qual a verdade não é
idêntica ao universal atemporal, apenas o histórico dando estrutura ao
absoluto, é uma norma seguida por Benjamin, ainda que provavelmente este a não
conhecesse. O programa está formulado numa nota feita para a sua fragmentária
obra principal e segundo a qual o eterno,
em qualquer dos casos, é mais um ruche do vestido que uma ideia. Com
isto Benjamin não pensou inocentemente na simples ilustração de conceitos
através de policromos objectos históricos, tal como fez Simmel ao expor a sua
metafísica simples da forma e vida nos objectos com asa, o actor e Veneza. O
desesperado esforço de Benjamin para romper e fugir da prisão do conformismo
cultural obedecia a constelações do histórico que não podem ser simples e
fugidios exemplos de ideias, mesmo que na sua unicidade constituam as próprias
ideias como históricas.
Um
tal procedimento valeu-lhe a duvidosa fama de ensaísta. Ainda hoje, a sua
auréola é a do refinado literator,
como a si próprio se teria designado com a sua coqueteria de antiquário. Mas
tendo em conta a radical intenção da sua hostilidade à estafada temática da
filosofia e ao seu calão, a língua dos rufiões, para usar as suas palavras,
é muito fácil recusar o cliché de ensaísta como simples mal-entendido. Mas o
recurso à explicação por mal-entendidos na acção de formações espirituais não
costuma levar muito longe. Um tal apelo pressupõe um ser-em-si do conteúdo, independente
do seu destino histórico e, desde logo, a noção do que o próprio autor pensava
da sua obra, coisa que nunca pode saber-se, e ainda menos no caso de um
escritor tão complexo e tortuoso como Benjamin. Os mal-entendidos são o meio de
comunicação do não-comunicativo. A provocadora frase de acordo com a qual um
artigo sobre as Passages de Paris
contém mais filosofia do que as meditações sobre o ser do ente, é mais útil
para alcançar o sentido da obra de Benjamin que a procura do esqueleto conceptual
sempre idêntico que ele próprio desterrou para o sótão. Além disso, ao violar
as fronteiras que separam o literário do filosófico, Benjamin fez virtude
inteligível da sua empírica necessidade. As universidades repeliram-no, para
própria vergonha delas, enquanto o antiquário se sentia atraído pelo académico
com ironia análoga à de Kafka na sua atracção pelas empresas de seguros». In
Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, introdução de T. W.
Adorno, Antropos, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1992, ISBN 972-708-177-0.
Cortesia
de Relógio D’Água/JDACT