(…) Contudo,
e em inexpugnável oposição aos entraves levantados injustamente à sua expansão,
e às pedradas, não muitas, valha a verdade, dum ou outro zoilo, que, de quando
em longe, zunem desarmoniosamente na ambiência carinhosa que o circunda, o
interesse pelo livro mantêm-se sempre forte, palpitante e cálido, como se
constata. E porquê? Qual a causa desta
violenta e estranha atracção pelo Só?
Que procura nele essa corrente de leitores, dia
a dia maior e mais ávida? Decerto aspirar o mágico hálito, ora acre,
ora doce, do mistério e da tristeza, que dos seus versos dimana, como se no
facetado maravilhoso daquelas estrofes se encontrasse espelhado, retratado com
espantosa nitidez e semelhança o fundo revolvido e chagado das suas almas,
ainda teimosas, apesar do quotidiano e brutal embate da realidade que as rodeia
e de contínuo as rasga com as garras aduncas, em vestirem-se da clâmide branca
e ihamada de oiro do Sonho. É como se aquelas perturbadas almas, que se
aglutinam na multidão caudalosa dos seus leitores, pressentissem e adivinhassem
quási, ao lerem essa autobiografia sombria e convulsa, serem elas mesmas pobres
irmãs da alma de Anto, tristes como ela, irmãs pelo sangue negro e tóxico da
dolorosidade que as entumece, pela complexidade, cheia de antagonismos, das
ambições que lá dentro redemoinham, pela submissão, quási aprazível, quási
voluptuosa, ao cilício da dúvida que as flagela, pelo peso da descrença que as
abate e roja no pó cinzento e frio do tédio. Irmãs, por um lado,
incomparavelmente mais felizes, pois, desprovidas do sentir mago, da intuição
feiticeira dos Artistas, sentem e sofrem, ao invés deles, apenas a agrura dos
seus destinos, num pequeno quinhão, restrito às suas personalidades vulgares,
embora, por outro lado, se devam achar um tanto mais desgraçadas, porque,
sentindo e sofrendo, elas, almas rasas, sem o condão excelso de, na voz divina,
de oiro e cristal, do génio, dizerem alto, uivarem, rezarem, cantarem as
sensações do seu martírio e os sofrimentos da sua tragédia ingente, rudes,
mudas, emparedadas, não podem alcançar a compensação que aos excepcionais, pela majestosa beleza que
impregna os seus desabafos postos em Arte, acode a aliviar-lhes o fadário de
viverem num mundo inferior e contrário à sua natureza melindrosa.
Se o
culto pelo Só, expresso numa
permanente e intensa leitura e desdobrando o seu fogo de Vesta em espíritos
mais ou menos artistas, embora apenas receptivos, assimiladores, pois, quanto a
mim, para admirar sinceramente qualquer obra de arte é de absoluta e primacial
necessidade ser-se de algum modo também um pouco artista, no que me ponho de
inteiro acordo com uma opinião, ainda mais concreta sobre o assunto, de Faguet,
o mestre-crítico, le lecteur de poetes
est un initié…, é tão considerável, que em breve espaço de tempo lhe
rarefaz no mercado as edições sucessivas e grossas e origina um jogo diabólico
de cifras sobre os poucos exemplares que ainda aparecem, como acabo de dizer,
não deve igualmente deixar de ser apontada, como não menor nem menos robusta,
antes pelo contrário, a sugestão que ele exerceu, já sobre os poetas contemporâneos
do autor, já, e maiormente, sobre os das nova e novíssima gerações. Acusam, bem
acentuado, o seu ascendente, todos os que após ele vieram ao mundo, neste
retalho da terra ocidental, com a dolorosa e estranha sina de vibrarem suas
almas acima das almas do vulgo, como monges e levitas mais ou menos inspirados
dessa religião de sempre, ou, de quando menos, de enquanto os Homens
permanecerem humanos, a Poesia.
Exerceu
sugestão, disse. Direi melhor, exerce, pois o facto dessa sugestão ainda hoje se
constata dia a dia nos livros que vão aparecendo. Sem grande arrojo poderia
dizer mesmo,-exercerá, atendendo a que no Só
há um manancial inesgotável de poesia, de pensamento
poético, a que, não só é lícito alguém recorrer como fonte inspiradora,
mas até é de recomendar que assim seja, pelo carácter nacional, português, que da maior parte daquelas
estrofes transpira. Assim se terá sempre um elemento poderoso de salutar
reacção contra as influências estrangeiras, que a moda versátil nos sopra, e ao
peso das quais as virtudes rácicas se derrancam e estiolam na literatura que fazemos».
In
César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa,
PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.
Cortesia
de L. Central/JDACT