sábado, 15 de novembro de 2014

Crónica de Almançor. Sultão de Marrocos (1578-1603). Dias Farinha. «A sua história é uma narrativa de combates incessantes com os mouros, apesar dos períodos em que foi possível manter uma paz precária, em especial nas primeiras décadas. O abandono de várias praças no reinado de João III permitia antever o fim da presença portuguesa no Magrebe»

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A Época. Os Portugueses em Marrocos no século XVI
«(…) Os combates terrestres eram também frequentes. A situação de carência económica era dolorosa. Em carta ao seu antecessor no governo da praça, escrevia Afonso Noronha: amandey o adayl aos Allemos com dez de cavalo nüa taforea e armey hum caravelão e dous barguantyns que não há aqui mais que me desfiz deles com minha ida e também não tinha fazenda com que os poder suster porque os homens de Ceyta são tão proves [pobres] que se os não ajudarem não podem ter navios e como lhes el-Rei nosso senhor não dá nada era necessário dar-lho eu do meu […] não escrevo as necessidades que há em Ceyta assim da guerra como de obras porque nunca vejo resposta de carta que sobre isso escreva nem sei se se há Sua Alteza por servidou. A situação das restantes praças não era melhor. Em Mazagão, Luís Loureiro sofreu considerável derrota em 30 de Março de 1547. Duzentos cavaleiros mouros surgiram diante da praça. O capitão saiu a combatê-los com cento e vinte cavaleiros e trezentos infantes levando também seu filho Luís Anes de catorze anos. Os assaltantes simularam fugir, Luís Loureiro perseguiu-os e caiu numa emboscada preparada pelo alcaide Hamu ben Daúde com seis mil cavaleiros. Quase todos os portugueses foram chacinados, entre os quais o filho do capitão. Este conseguiu fugir graças à abnegação de Lázaro Martins que lhe deu o próprio cavalo, ficando cativo. Luís Loureiro salvou-se, mas sofreu quatro grandes feridas e perdeu três dedos da mão esquerda. Luís Loureiro, acabrunhado, só escreveu ao rei em 16 de Abril. Mas, entretanto, o Algarve já socorria a praça vítima de tal destroço.
A nova da derrota chegara a Tavira no domingo 24, à tarde, e quatro navios foram imediatamente aparelhados e despachados: o primeiro no dia seguinte, e os outros nos dias 26 e 27 de manhã com duzentos homens na frol desta cidadela escrevia Duarte Martins, corregedor de Tavira, em carta a João III, de 27 do mesmo mês. Os exemplos referidos, do ano de 1547, pouco antes da presença de Camões, são frequentes nas praças de Marrocos durante o século XVI. A sua história é uma narrativa de combates incessantes com os mouros, apesar dos períodos em que foi possível manter uma paz precária, em especial nas primeiras décadas. O abandono de várias praças no reinado de João III permitia antever o fim da presença portuguesa no Magrebe e a assunção de outros rumos nos projectos expansionistas do Reino. Mas a dúvida persistente e inquietante cristalizava entre a opção pela longínqua aventura oriental e a conquista de um império cristão, sem solução de continuidade entre as praças do Algarve de aquém e de além mar em África.

A época anterior à batalha de Alcácer Quibir é muito complexa e encerra múltiplas contradições cuja influência relativa na condução da vida política do reino surge difícil de conhecer com rigor. Pode, no entanto, afirmar-se que a decisão do monarca Sebastião passar a África teve origem num largo conjunto de motivações que actuaram em convergência e que determinaram uma avaliação incorrecta da correlação das forças em conflito e dos riscos consequentes a uma possível derrota. Apontaram-se razões políticas que remontam à época da conquista de Ceuta e das restantes praças marroquinas e que pretendiam alargar o território, graças à ocupação de algumas regiões na África do Norte. São referidas causas sociais a propósito das necessidades expansionistas da nobreza, dos mercadores e de outros sectores da população. Argumentos de carácter estratégico e militar valorizavam o livre acesso aos estreitos marítimos, a presença no Mediterrâneo e a defesa da costa ocidental africana. Interesses económicos pretendiam a obtenção de trigo, de ouro, de especiarias e de escravos. A curiosidade de saber, e mesmo a atracção do desconhecido e da aventura, certamente motivaram muitos homens do período dos Descobrimentos e da Expansão. Razões psicológicas e de mentalidade da época permitem compreender as ambições de poder e de riqueza. O espírito religioso de salvação da alma, e de almas, iluminou muitas actuações individuais e de grupo e explica o grande esforço missionário daqueles tempos.
Os povos com quem os portugueses entraram em contacto possuíam os seus próprios padrões de cultura e de civilização e diferente capacidade de reacção perante o desafio que os cristãos representavam no viver quotidiano e nos seus hábitos ancestrais. O impacto produzido pelos novos vizinhos foi diverso em tantas regiões e assumiu aspectos muitas vezes contraditórios. A resposta das populações contactadas variou desde a xenofobia à rejeição, à quase indiferença, até ao apoio e colaboração. Muitas vezes a guerra impediu o conhecimento entre os povos e criou conflitos insanáveis. Os descobrimentos, a expansão política e militar, a vida económica, a colonização e a missionação foram ajustados pela capacidade e interesses dos portugueses e pelas respostas sucessivamente obtidas. O conjunto inscrevia-se, naturalmente, num quadro com implicações mais vastas em que sobrelevavam o espírito ecuménico da igreja e os condicionalismos da política peninsular e europeia. A matriz expansionista portuguesa procurou, de início, conquistar uma parte do Magrebe. A tomada de Ceuta, as tentativas para obter Tânger, as expedições a Alcácer Ceguer e a Arzila mobilizaram milhares de homens e grande parte dos recursos do Reino. O século XV foi dominado por este pensamento constante, cujos protagonistas maiores foram João I, o infante Henrique, o vedor da Fazenda João Afonso Alenquer, Afonso V, o Africano, e o infante Fernando, sobrinho e herdeiro do Navegador. O Infante Fernando, o dito Santo, por seu lado, aureolou a empresa africana com a coroa do martírio». In António Dias Farinha, Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603), Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1997, ISBN 972-672-864-9.

Cortesia de IICT/JDACT