A Época. Os Portugueses em Marrocos no século XVI
«(…) Os combates terrestres eram também frequentes. A situação de carência
económica era dolorosa. Em carta ao seu antecessor no governo da praça,
escrevia Afonso Noronha: amandey o adayl aos
Allemos com dez de cavalo nüa taforea e armey hum caravelão e dous barguantyns
que não há aqui mais que me desfiz deles com minha ida e também não tinha fazenda
com que os poder suster porque os homens de Ceyta são tão proves [pobres] que
se os não ajudarem não podem ter navios e como lhes el-Rei nosso senhor não dá
nada era necessário dar-lho eu do meu […] não escrevo as necessidades que há em
Ceyta assim da guerra como de obras porque nunca vejo resposta de carta que
sobre isso escreva nem sei se se há Sua Alteza por servidou. A situação das
restantes praças não era melhor. Em Mazagão, Luís Loureiro sofreu considerável
derrota em 30 de Março de 1547.
Duzentos cavaleiros mouros surgiram diante da praça. O capitão saiu a combatê-los
com cento e vinte cavaleiros e trezentos infantes levando também seu filho Luís
Anes de catorze anos. Os assaltantes simularam fugir, Luís Loureiro
perseguiu-os e caiu numa emboscada preparada pelo alcaide Hamu ben Daúde com
seis mil cavaleiros. Quase todos os portugueses foram chacinados, entre os
quais o filho do capitão. Este conseguiu fugir graças à abnegação de Lázaro
Martins que lhe deu o próprio cavalo, ficando cativo. Luís Loureiro salvou-se,
mas sofreu quatro grandes feridas e perdeu três dedos da mão esquerda. Luís
Loureiro, acabrunhado, só escreveu ao rei em 16 de Abril. Mas, entretanto, o
Algarve já socorria a praça vítima de tal destroço.
A nova da derrota chegara a Tavira no domingo 24, à tarde, e quatro navios
foram imediatamente aparelhados e despachados: o primeiro no dia seguinte, e os
outros nos dias 26 e 27 de manhã com duzentos homens na frol desta cidadela
escrevia Duarte Martins, corregedor de Tavira, em carta a João III, de 27 do
mesmo mês. Os exemplos referidos, do ano de 1547, pouco antes da presença de Camões, são frequentes nas praças
de Marrocos durante o século XVI. A sua história é uma narrativa de combates
incessantes com os mouros, apesar dos períodos em que foi possível manter uma
paz precária, em especial nas primeiras décadas. O abandono de várias praças no reinado de João III permitia antever
o fim da presença portuguesa no Magrebe e a assunção de outros rumos
nos projectos expansionistas do Reino. Mas a dúvida persistente e inquietante
cristalizava entre a opção pela longínqua aventura oriental e a conquista de um
império cristão, sem solução de continuidade entre as praças do Algarve de aquém
e de além mar em África.
A época anterior à batalha de Alcácer Quibir é muito complexa e encerra
múltiplas contradições cuja influência relativa na condução da vida política do
reino surge difícil de conhecer com rigor. Pode, no entanto, afirmar-se que a
decisão do monarca Sebastião passar a África teve origem num largo conjunto de
motivações que actuaram em convergência e que determinaram uma avaliação
incorrecta da correlação das forças em conflito e dos riscos consequentes a uma
possível derrota. Apontaram-se razões políticas que remontam à época da conquista
de Ceuta e das restantes praças marroquinas e que pretendiam alargar o
território, graças à ocupação de algumas regiões na África do Norte. São
referidas causas sociais a propósito das necessidades expansionistas da
nobreza, dos mercadores e de outros sectores da população. Argumentos de
carácter estratégico e militar valorizavam o livre acesso aos estreitos marítimos,
a presença no Mediterrâneo e a defesa da costa ocidental africana. Interesses
económicos pretendiam a obtenção de trigo, de ouro, de especiarias e de escravos.
A curiosidade de saber, e mesmo a atracção do desconhecido e da aventura,
certamente motivaram muitos homens do período dos Descobrimentos e da Expansão.
Razões psicológicas e de mentalidade da época permitem compreender as ambições
de poder e de riqueza. O espírito religioso de salvação da alma, e de almas,
iluminou muitas actuações individuais e de grupo e explica o grande esforço
missionário daqueles tempos.
Os povos com quem os portugueses entraram em contacto possuíam os seus
próprios padrões de cultura e de civilização e diferente capacidade de reacção
perante o desafio que os cristãos representavam no viver quotidiano e nos seus
hábitos ancestrais. O impacto produzido pelos novos vizinhos foi diverso em
tantas regiões e assumiu aspectos muitas vezes contraditórios. A resposta das
populações contactadas variou desde a xenofobia à rejeição, à quase
indiferença, até ao apoio e colaboração. Muitas vezes a guerra impediu o
conhecimento entre os povos e criou conflitos insanáveis. Os descobrimentos, a
expansão política e militar, a vida económica, a colonização e a missionação
foram ajustados pela capacidade e interesses dos portugueses e pelas respostas
sucessivamente obtidas. O conjunto inscrevia-se, naturalmente, num quadro com
implicações mais vastas em que sobrelevavam o espírito ecuménico da igreja e os
condicionalismos da política peninsular e europeia. A matriz expansionista
portuguesa procurou, de início, conquistar uma parte do Magrebe. A tomada de
Ceuta, as tentativas para obter Tânger, as expedições a Alcácer Ceguer e a
Arzila mobilizaram milhares de homens e grande parte dos recursos do Reino. O
século XV foi dominado por este pensamento constante, cujos protagonistas
maiores foram João I, o infante Henrique, o vedor da Fazenda João Afonso Alenquer,
Afonso V, o Africano, e o infante
Fernando, sobrinho e herdeiro do Navegador.
O Infante Fernando, o dito Santo, por seu lado, aureolou a empresa africana com
a coroa do martírio». In António Dias Farinha, Crónica de
Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603), Investigação Científica Tropical,
Lisboa, 1997, ISBN 972-672-864-9.
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