A época contemporânea. Introdução
Sob o olhar da história: da vida privada família à vida privada
individual (1820-1950)
«(…) Sob o ponto de vista linguístico, a evolução do
conceito não é linear nem unívoca, apontando para uma dimensão plural e
distintos conteúdos valorativos. Em termos lexicais, a palavra privada significa, em meados do século
XVII, de acordo com o Vocabulario Portuguez e Latino do
padre Raphael Bluteau (edição de 1720), secreta; latrina ou lugar público para as necessidades da
natureza, onde iam os que não tinham calhandreiras, nem escravos para despejar
serviços, conotação de manifesto conteúdo escatológico que se mantém nos
dias de hoje, designando instalações sanitárias
em alguns países lusófonos. Já o vocábulo privado
identifica particular, uma pessoa privada que não exerce ofício
algum público, que trata só da sua família e dos seus interesses domésticos.
Cerca de um século depois, os sinónimos mantêm-se, registando-se ainda um outro,
despojado, palavra que remete para a
forma latina privare, que significa privar de alguma coisa, desapropriar. No contexto da sociedade
oitocentista, o vocábulo parece adquirir um sentido ideológico preciso, a privação de direitos políticos, aludindo
a um dos actos fundamentais do acesso à cidadania que coloca o indivíduo no
espaço público. Trata-se de uma situação que caracteriza grande parte da
população, dada a base censitária dos regimes eleitorais, mas muito em
particular a condição das mulheres, totalmente isentas de direitos políticos.
Longe de ser neutral, a separação público/privado passava
também pela diferença de género, sendo o espaço público considerado o lugar por
excelência do sexo masculino e o privado, ou doméstico, do sexo feminino,
partilhando-se da convicção que a domesticidade
era condição natural da mulher, ou
seja, inerente à sua própria natureza. O discurso oitocentista insiste nas
qualidades e aptidões específicas de cada sexo, fundamento biológico da ordem
sexual, base das duas esferas, na terminologia
do tempo: aos homens, o cérebro, a inteligência, a capacidade de decisão; às
mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos. Melhor do que ninguém, o
escritor Almeida Garrett expõe este binómio, ao escrever: [...] a natureza deu à mulher meios diferentes dos que deu aos homens.
A força que Deus pôs no braço do homem, está nos lábios e nos olhos da mulher.
A fortaleza e decisão são o vigor do carácter masculino; a generosa resignação,
a gentil deferência, a constância no sofrimento e nas privações, são o vigor;
não menos poderoso e eficaz, da índole feminina. Em contraponto ao modelo
positivo que associa a mulher ao espaço privado, a expressão mulher pública era sinónimo de prostituta, definindo o contra-ideal do
que deveria ser uma mulher conveniente, sentido que não tendo desaparecido
completamente nos dias de hoje, tende a atenuar-se em benefício da imagem
valorativa da participação feminina nas diversas instâncias do poder político.
Convém, no entanto, levar um pouco mais longe o pensamento de
forma a captar a lógica discursiva que se oculta por detrás da linguagem. Ora,
se tivermos presente que os espaços público e privado se constroem opondo-se,
não é difícil admitir que obedecem a princípios contrastantes. Se o primeiro é
entendido como esfera da liberdade e da igualdade, o segundo pressupõe uma
relação hierarquizada entre os seus membros, seja entre o homem e a mulher, o marido
e a esposa, os pais e os filhos, entre outras, modelo comum à estrutura
familiar tradicional e que a jurisprudência oitocentista consagraria na lei. Um
dos aspectos mais interessantes do estudo da vida privada, no decurso do
período considerado neste livro, reside precisamente em saber como é que a
lógica das esferas separadas, que constitui a base da ordem social, cívica e
moral, se singulariza no quotidiano, é aceite ou, pelo contrário, questionada. A
aproximação ao conceito de vida privada pera via lexical permite, por
conseguinte, supor uma evolução semântica do termo, pela incorporação de
valores, códigos culturais e formas de sociabilidade que, não sendo
inteiramente originais, irromperam no contexto político e ideológico da
implantação do liberalismo». ». In JoséMattoso, História da Vida Privada em
Portugal, A Época Contemporânea, coordenação de Irene Vaquinhas, Círculo de
Leitores e Temas e Debates, 2011, ISBN 978-989-644-149-4.
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