quarta-feira, 12 de novembro de 2014

História da Vida Privada em Portugal José Mattoso. «Um dos aspectos mais interessantes do estudo da vida privada, reside precisamente em saber como é que a lógica das esferas separadas, que constitui a base da ordem social, cívica e moral, se singulariza no quotidiano, é aceite ou, pelo contrário, questionada»

Maquete de paláco no século XV, Rossio
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A época contemporânea. Introdução
Sob o olhar da história: da vida privada família à vida privada individual (1820-1950)
«(…) Sob o ponto de vista linguístico, a evolução do conceito não é linear nem unívoca, apontando para uma dimensão plural e distintos conteúdos valorativos. Em termos lexicais, a palavra privada significa, em meados do século XVII, de acordo com o Vocabulario Portuguez e Latino do padre Raphael Bluteau (edição de 1720), secreta; latrina ou lugar público para as necessidades da natureza, onde iam os que não tinham calhandreiras, nem escravos para despejar serviços, conotação de manifesto conteúdo escatológico que se mantém nos dias de hoje, designando instalações sanitárias em alguns países lusófonos. Já o vocábulo privado identifica particular, uma pessoa privada que não exerce ofício algum público, que trata só da sua família e dos seus interesses domésticos. Cerca de um século depois, os sinónimos mantêm-se, registando-se ainda um outro, despojado, palavra que remete para a forma latina privare, que significa privar de alguma coisa, desapropriar. No contexto da sociedade oitocentista, o vocábulo parece adquirir um sentido ideológico preciso, a privação de direitos políticos, aludindo a um dos actos fundamentais do acesso à cidadania que coloca o indivíduo no espaço público. Trata-se de uma situação que caracteriza grande parte da população, dada a base censitária dos regimes eleitorais, mas muito em particular a condição das mulheres, totalmente isentas de direitos políticos.
Longe de ser neutral, a separação público/privado passava também pela diferença de género, sendo o espaço público considerado o lugar por excelência do sexo masculino e o privado, ou doméstico, do sexo feminino, partilhando-se da convicção que a domesticidade era condição natural da mulher, ou seja, inerente à sua própria natureza. O discurso oitocentista insiste nas qualidades e aptidões específicas de cada sexo, fundamento biológico da ordem sexual, base das duas esferas, na terminologia do tempo: aos homens, o cérebro, a inteligência, a capacidade de decisão; às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos. Melhor do que ninguém, o escritor Almeida Garrett expõe este binómio, ao escrever: [...] a natureza deu à mulher meios diferentes dos que deu aos homens. A força que Deus pôs no braço do homem, está nos lábios e nos olhos da mulher. A fortaleza e decisão são o vigor do carácter masculino; a generosa resignação, a gentil deferência, a constância no sofrimento e nas privações, são o vigor; não menos poderoso e eficaz, da índole feminina. Em contraponto ao modelo positivo que associa a mulher ao espaço privado, a expressão mulher pública era sinónimo de prostituta, definindo o contra-ideal do que deveria ser uma mulher conveniente, sentido que não tendo desaparecido completamente nos dias de hoje, tende a atenuar-se em benefício da imagem valorativa da participação feminina nas diversas instâncias do poder político.
Convém, no entanto, levar um pouco mais longe o pensamento de forma a captar a lógica discursiva que se oculta por detrás da linguagem. Ora, se tivermos presente que os espaços público e privado se constroem opondo-se, não é difícil admitir que obedecem a princípios contrastantes. Se o primeiro é entendido como esfera da liberdade e da igualdade, o segundo pressupõe uma relação hierarquizada entre os seus membros, seja entre o homem e a mulher, o marido e a esposa, os pais e os filhos, entre outras, modelo comum à estrutura familiar tradicional e que a jurisprudência oitocentista consagraria na lei. Um dos aspectos mais interessantes do estudo da vida privada, no decurso do período considerado neste livro, reside precisamente em saber como é que a lógica das esferas separadas, que constitui a base da ordem social, cívica e moral, se singulariza no quotidiano, é aceite ou, pelo contrário, questionada. A aproximação ao conceito de vida privada pera via lexical permite, por conseguinte, supor uma evolução semântica do termo, pela incorporação de valores, códigos culturais e formas de sociabilidade que, não sendo inteiramente originais, irromperam no contexto político e ideológico da implantação do liberalismo». ». In JoséMattoso, História da Vida Privada em Portugal, A Época Contemporânea, coordenação de Irene Vaquinhas, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2011, ISBN 978-989-644-149-4.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT