O Povo Desaparecido
«Esta é a história duma viagem através duma grande região,
desértica, em busca de algum puro sobrevivente desse povo primitivo, único e
quase desaparecido do meu país natal, os Bochimanes de África. Essa
viagem realizou-se, de facto, há apenas um ano; num sentido mais profundo,
porém, começou muito antes disso. Na verdade, tudo isto remonta a um tempo tão
recuado, que é impossível determinar quando, realmente, principiou. O que sei
ao certo é que, logo que tive consciência de mim próprio como criança, a minha
imaginação entrou, como a mão entra na luva, numa profunda preocupação com o
pequeno Bochimane e o seu terrível destino. Nasci perto do Rio Grande,
no coração da região que fora, durante milhares de anos, o grande país Bochimane.
O próprio Bochimane, como entidade coerente, tinha há muito desaparecido.
Porém, desde o meu nascimento, eu fora rodeado por tantos fragmentos vivos da
sua raça e da sua cultura, que o sentia extremamente perto. Constantemente o
encontrava nos lábios dos homens vivos. Ao lado da lareira, nas noites frias de
Inverno, na herdade de minha mãe, a herdade de Wol…, a montanha dos lobos (como os meus compatriotas chamavam às grandes
hienas listradas) ou em roda da fogueira do acampamento, enquanto o uivo lamentoso
dos chacais arrancava um balido apreensivo a uma ovelha recém-parida do rebanho
próximo e a tarambola nocturna gemia por sobre a planície negra como a sereia
dum navio, o Bochimane surgia, vivo, no centro de alguma forte
reminiscência de pioneiro: um Bochimane alegre, intrépido, malicioso, desconcertante
e eternamente impenitente e provocador. Embora desaparecido da terra, ainda
perseguia a vida e a realidade no sangue misto dos povos de cor, tão subtilmente
como perseguira a abundante caça africana. Estava presente nos olhos duma das
primeiras mulheres que se ocuparam de mim, cujo brilho fora tirado da primeira
luz de algum dia africano perdido nos séculos. Aqui, um toque de sangue bochimane
daria a um rosto bantu, sem ele puro, um ar mongólico; ali, tingiria a pele
retinta dum africano central dum amarelado de damasco, ou estalaria, como
faísca eléctrica, na explosão onomatopaica que o Bochimane tinha imposto à
língua sonora do invasor.
À medida que crescia, mais eu lamentava ter chegado
demasiado tarde para o conhecer em carne e osso. Durante muitos anos, não pude
aceitar que a porta se tivesse para sempre fechado sobre o Bochimane. E
continuei a procurar notícias e informações a seu respeito, como se a preparar-me
para o dia em que a porta se abrisse e ele reaparecesse no meio de nós. Na verdade,
creio que a primeira pergunta objectiva que jamais fiz à vida foi esta: Quem era realmente, o Bochimane?.
Fi-la a gente de todas as raças e cores que podia ter tido contacto com ele,
até o ponto de muitos corações pacientes deverem ter achado difícil suportar a
incompreendida impertinência duma criança. Disseram-me muita coisa. Mas o que me
disseram só serviu para aumentar a minha sede por mais. Disseram-me que era um
homem pequeno, sem ser anão ou pigmeu, um homem com cerca de um metro cinquenta
de altura. Era robusto, bem constituído. Tinha os ombros largos, mas as mãos e
os pés eram extraordinariamente pequenos e delicadamente modelados. O mais
velho dos nossos empregados basutos disse-me que bastava que alguém visse uma
vez na areia as suas pegadas pequenas e precisas para nunca mais as esquecer.
Tinha os tornozelos delgados como um cavalo de corrida, as pernas flexíveis, os
músculos lassos e corria como o vento, velozmente e por muito tempo. De facto, quando
se deslocava, quase nunca andava, no sentido próprio do termo, mas antes, como
a gazela ou o cão selvagem, corria num trote fácil. Nunca existira ninguém que
corresse como ele sobre o veldt e os seixos, e os ossos de muito basuto e
koranna solitário branqueavam ao sol para provar como fora em vão que ele
tentara ultrapassá-lo. Tinha a pele solta, uma pele que muito cedo se enrugava
e cobria de pregas. Quando ria, o que fazia facilmente, a cara cobria-se-lhe
dum complicado desenho de pequenas rugas e sulcos». In Laurens van der Post, The lost
world of the Kalahari, O Mundo Perdido de Calaári, edição Livros do Brasil,
Lisboa.
Cortesia de LdoBrasil/JDACT