O
anti-semitismo como uma ofensa ao bom senso
«(…) Contudo, o declínio dos
judeus na Europa ocidental e central forma apenas o pano de fundo para os
eventos subsequentes, e explica tão pouco esses eventos como o facto de a
aristocracia ter perdido o poder explicaria a Revolução Francesa. Conhecer
essas regras gerais é importante, para que seja possível refutar as insinuações
do aparente bom senso, segundo as quais o ódio violento ou a súbita rebelião
são necessariamente decorrentes do exercício de forte poder e de abusos
cometidos pelos que constituem o alvo do ódio, e que, consequentemente, o ódio organizado
contra os judeus só pode ter surgido como reacção contra sua importância e o
seu poderio. Mais séria parece outra argumentação: os judeus, por serem um
grupo inteiramente impotente, ao serem envolvidos nos conflitos gerais e
insolúveis da época, podiam facilmente ser acusados de responsabilidade por
esses conflitos e apresentados como autores ocultos do mal. O melhor exemplo, e
a melhor refutação, dessa explicação, que é tão grata ao coração de muitos liberais,
está numa anedota contada após a I Grande Guerra. Um anti-semita alegava que os
judeus haviam causado a guerra. A resposta foi: Sim, os judeus e os ciclistas. Por
que os ciclistas?, pergunta um. E
por que os judeus?, pergunta outro. A teoria que apresenta os judeus
como eterno bode expiatório não significa que o bode expiatório poderia também ser qualquer outro grupo? Essa
teoria defende a total inocência da vítima. Ela insinua não apenas que nenhum
mal foi cometido mas, também, que nada foi feito pela vítima que a relacionasse
com o assunto em questão. Contudo, quem tenta explicar por que um determinado
bode expiatório se adapta tão bem a tal papel abandona nesse momento a teoria e
envolve-se na pesquisa histórica. E então o chamado bode expiatório deixa de
ser a vítima inocente a quem o mundo culpa por todos os seus pecados e através
do qual deseja escapar ao castigo; torna-se um grupo entre outros grupos, todos
igualmente envolvidos nos problemas do mundo. O facto de ter sido ou estar
sendo vítima da injustiça e da crueldade não elimina a sua co-responsabilidade.
Até há pouco, a falta de lógica
aparente na formulação da teoria do bode expiatório bastava para descartá-la como
escapista. Mas o surgimento do terror como importante arma dos governos aumentou-lhe
a credibilidade. A diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as
tiranias do passado está no uso do terror não como meio de extermínio e
amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento corriqueiro para governar as
massas perfeitamente obedientes. O terror, como o conhecemos hoje, ataca sem
provocação preliminar, e suas vítimas são inocentes até mesmo do ponto de vista
do perseguidor. Esse foi o caso da Alemanha nazista, quando a campanha de
terror foi dirigida contra os judeus, isto é, contra pessoas cujas
características comuns eram aleatórias e independentes da conduta individual
específica. Na Rússia soviética a situação é mais confusa, já que o sistema
bolchevista, ao contrário do nazista, nunca admitiu em teoria o uso de terror contra
pessoas inocentes: tal afirmação, embora possa parecer hipócrita em vista de
certas práticas, faz muita diferença. Por outro lado, a prática russa é mais avançada do que a nazista em um
particular: a arbitrariedade do terror não é determinada por diferenças
raciais, e a aplicação do terror segundo a procedência sócio-económica (de
classe) do indivíduo foi abandonada há tempos, de sorte que qualquer pessoa na
Rússia pode subitamente tornar-se vítima do terror policial. Não estamos interessados
aqui na última consequência do exercício do domínio pelo terror, que leva à
situação na qual jamais ninguém, nem mesmo o executor, está livre do medo; em
nosso contexto, tratamos apenas da arbitrariedade com que as vítimas podem ser
escolhidas, e para isso é decisivo que sejam objectivamente inocentes, que
sejam selecionadas sem que se atente para o que possam ou não ter feito.
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primeira vista, isso pode parecer confirmação tardia da velha teoria do bode
expiatório, e é verdade que a vítima do terror moderno exibe todas as
características do bode expiatório: no sentido objectivo é absolutamente
inocente, porque nada fez ou deixou de fazer que tenha alguma ligação com o seu
destino. Há, portanto, uma tentação de voltar à explicação que automaticamente
tira toda a responsabilidade da vítima: ela parece corresponder à realidade em
que nada nos impressiona mais do que a completa inocência do indivíduo tragado
pela máquina do terror, e a sua completa incapacidade de mudar o destino
pessoal. O terror, contudo, assume a simples forma do governo só no último
estágio do seu desenvolvimento. O estabelecimento de um regime totalitário
requer a apresentação do terror como instrumento necessário para a realização
de uma ideologia específica, e essa ideologia deve obter a adesão de muitos,
até mesmo da maioria, antes que o terror possa ser estabelecido. O que
interessa ao historiador é que os judeus, antes de se tornarem as principais
vítimas do terror moderno, constituíam o centro de interesse da ideologia
nazista. Ora, uma ideologia que tem de persuadir e mobilizar as massas não pode
escolher sua vítima arbitrariamente». In Hannah Arendt, The origins
of totalitarianism, 1949, Origens
do Totalitarismo, Mary McCarthy West, 1979, Wikipédia.
Cortesia
de Wikipédia/JDACT