A
Última Olímpica
«(…)
Os heróis gregos, crianças radiosas, brincavam com a morte como se brinca a
andar sobre a própria sombra, com a Vitória como com um torcaz ensinado a
pousar-lhes na mão. Achamo-nos aqui num dos raros pontos de contacto entre a
Grécia e a Galileia onde um jovem deus se serve dos pássaros e das flores dos
campos para as suas comparações: Se não
vos tornardes como crianças... A Terra procria, alimenta, adormece sobre os
joelhos o seu filho Aquiles, cujos pés leves foram os ossinhos da Sorte, seu
filho Pélope, seu filho Alexandre, que fez do mundo uma pista olímpica. A
aclamação das multidões não é mais vã que o barulho das folhas; um corpo que
cai não é mais trágico que uma árvore que tomba. A morte é, quando muito, o
verme inocente do belo fruto, e a árvore, e o homem e o verme integram a
Natureza, ela própria o corpo dos deuses. O crepúsculo desce, tão dourado como
foi a manhã, como foi o pleno dia. Os cimos recolhem-se, aceitam a noite com a
mesma graça com que aceitavam a aurora. Um pouco de luz estagna no côncavo do
vale, como um pouco de água no côncavo de uma mão fresca. A noite paira, tecida
de oiro como um estojo divino. Aqui a obscuridade é mais maternal, mais
fraternal que amorosa: a Grande Mãe muda-se em Boa Virgem: Deméter torna a ser
Perséfone; Latona torna a ser Ártemis.
Os
joelhos terrestres recobrem-se lentamente de um veludo estrelado. O leite de
Hera escorre na Via Láctea, brotado de uma mordedura no seio azul. A sombra
onde tudo se torna Sombra mal deixa adivinhar, na palestra, a mais esbelta das
colunas, fuste agora solitário em torno do qual os jovens lutadores de antanho
decerto passaram muitas vezes o braço como em volta de uma cintura, e que não
se pode ver sem se pensar em Hipólito. A vida, madrasta ardente e repelida sob
a forma de Fedra, suscitava contra ele um monstro que Hércules teria
exterminado sem custo, mas cujo sopro bastava para destruir esse mancebo
virgem, esse mancebo-flor. Depois, fatal, tranquilizante, lunar, a Morte aproximava-se
dele sob a forma de Ártemis. Ele adivinhava-a sem a ver, pois os moribundos não
fazem senão adivinhar os deuses. E nós que incessantemente morreremos a nossa
vida, nós tão-pouco entrevimos Ártemis. Mas aspiramos aqui o seu perfume de
erva e de astro e, deitados sob esse céu, sob essas luzes, vemos na noite um
pedaço do seu manto». 1934
Aldeias
gregas
«Tomemos,
por exemplo, uma aldeia da Eubeia ou do Peloponeso ou mesmo dos arredores de
Atenas. São as mais simples, as mais nuas. Não maravilham como as aldeias secas
das ilhas, ossos polidos, conchas encantadoras, lentamente formadas pelo homem em
colaboração com o mar. Não convidam, como as aldeias do Dodecaneso, das ilhas
da Ásia Menor ou mesmo da Trácia, a uma doce indolência como o céu e as
melopeias do Oriente. Pura forma da habitação humana, informam-nos da maneira
como as cidades nasceram e muitas vezes se perpetuaram. A Atenas de Teseu
era uma aldeia; a Atenas bizantina voltara a ser outra e suspeita-se de que,
nos mais belos tempos, assim permaneceu: nem a poesia secreta e buliçosa das
cidades do Oriente, nem a arquitectura prestigiosa, só de fachadas, de uma
Alexandria antiga ou de uma Roma, mas o lugar onde cada um se informava do
preço das azeitonas e da última peça de Sófocles, onde a voz de Sócrates se
ouvia de uma ponta à outra da Ágora. Tal como Atenas que, por
muito modernizada que esteja, permanece uma aldeia, apesar dos seus anúncios a néon
e dos buildings que não fazem senão
elevar um pouco mais ao céu os habituais terraços, a aldeia é uma cidade
reduzida aos seus elementos essenciais: a igreja ladeada por uma espécie de
pombal para sinos; a loja onde se vende de tudo e cujo dono fala inglês por ter
estado em Nova lorque ou no Transval; o seu garagista heróico, pronto a lançar
os seus velhos Ford por todos os caminhos pedregosos da Grécia; enfim, o seu
café, com os seus dois ou três plátanos e umas quantas mesas de ferro rodeadas
de cadeiras de palha, lugar sacrossanto da política, dos ócios e do sonho que não
sonha nada». In Marguerite Yourcenar, En Pélerin et Étranger, Gallimard, 1989,
Peregrino e Estrangeiro, Ensaios, Livros do Brasil, Lisboa, 1990.
Cortesia
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