«Jovem e bela; as suas mãos, não habituadas
aos lavores femininos, costumavam empunhar dardos e retesar arcos de setas
voadoras; ocupava-se nos duros combates. Era a rainha dos Volscos. A sua
velocidade era tal que lhe permitiria passar sobre uma seara verdejante sem
danificar as tenras espigas e sobre a superfície do mar sem que os seus pés
delicados sentissem a humidade da água. Métabo, seu pai, quando foi expulso do
reino graças ao despotismo cruel com que governava o seu povo e se apressava a
fugir para o exílio, levou-a consigo, ainda recém-nascida. Na fuga, consagrou-a
a Diana, quando, para a salvar, a envolveu nas casca de um sobreiro e, amarrada
a uma lança, a arrojou pelos ares para a outra margem do impetuoso Amaseno. O
lançamento foi bem executado; a aterragem, perfeita: a criança chegou sã e
salva à outra margem. Passaram a viver nos montes com os pegureiros e o leite
de uma égua selvagem servia de alimento à jovem criança. Mal se sustinha de pé
e, ainda a custo, dava os primeiros passos, e já começava a lançar o dardo e as
setas. Os seus adornos eram o arco e a aljava; a roupa, uma pele de tigre.
Já núbil, muitas mães a desejam para nora,
mas ela contenta-se apenas com o culto de Diana; dedica-se aos combates e
rodeia-se, qual Amazona, de uma coorte feminina. Ei-la diante de Turno a
oferecer-lhe o seu auxílio e disposta a avançar de imediato ao encontro do
exército dos Teucros para suster o seu avanço. Turno, porém, confia-lhe o
comando da cavalaria e entrega-lhe a defesa da cidade. A dureza do combate vem
demonstrar a sua capacidade bélica e a sua velocidade e permite-lhe provocar
uma verdadeira carnificina entre os inimigos. Mas eis que a sua juventude e
feminilidade, até aí dominadas, rompem as amarras: ao longe, avança um
guerreiro adornado de vestes esplendentes e de armas magníficas. A donzela olha
para ele e não mais o perde de vista. Cega para tudo o resto, deseja apenas
aquelas armas e a todo o preço. Mas este vai ser demasiado elevado: ... a morte. Na mira daqueles
despojos, não vê outro guerreiro que, de longe, a persegue sem cessar; não ouve
sequer o ruído do dardo que para ela se encaminha; só vê o esplendor dos
adornos do cavaleiro frígio e ... só sente a dor provocada pelo dardo veloz,
quando este, certeiro, a atinge profundamente no seio descoberto. Ainda tenta
arrancar o dardo, mas as forças já desfalecem. Enfrenta então a morte com
serenidade: envia as últimas recomendações a Turno e, só depois, a vida,
com um gemido, lhe foge, indignada para o reino das sombras. O seu nome
era Camila.
Esta personagem, que, no seu conjunto, nos
surge desenhada com um misto de fantasia e realismo, quase nos dá a impressão
de se tratar de uma semideusa. Esta sensação é ainda reforçada pelo significado
do seu nome que, como substantivo comum, camillus / Camilla, está
ligado ao ritual religioso etrusco e designa um jovem empenhado no culto dos
deuses. Ora Camila está empenhada no culto de Diana, ainda que o não faça
de forma institucional. Este carácter semidivino de Camila é acentuado pelo
próprio Virgílio que, por três vezes diferentes, utiliza adjectivos que
pretendem traduzir sensações que se experimentam perante os seres divinos: em 11.507
é Turno que tem a visão de pavor que se sente diante da divindade: em 11.699-701
é a vez do filho de Auno, que territus se detém diante dela e,
finalmente, em 11.806, a de Arrunte, que fugit ante omnis
exterritus. O aspecto maravilhoso, que lhe dá uma aparência
sobre-humana, começa a desenhar-se desde a infância e é reforçado pela maneira
como a sua história nos é apresentada. Com efeito, é a deusa Diana quem, cheia
de desvelo, dá a conhecer a Ópis o passado de Camila, repleto de
acontecimentos extraordinários.
A fuga para o exílio é marcada por eventos
miraculosos. Na realidade, apesar das precauções de Métabo, só uma intervenção
divina explica que esta criança tenha chegado incólume à outra margem do impetuoso
Amaseno. E a deusa da caça que, invocada por Métabo através da dedicação de Camila,
vem em socorro da criança e a faz chegar, sem dano, ao outro lado do rio. Mas
se este voo sobre o Amaseno é miraculoso, ele serve também de predestinação
para a vida desta criança. Camila vai ficar, para sempre, consagrada
a Diana, mas vai ficar também ligada, para sempre, à vida guerreira. Os nós,
que agora a amarraram à lança que a salvou, só por outra lança poderão ser
desfeitos: a que, arremessada por Arrunte, a vai prostrar, sem vida, aos
pés da sua coorte feminina. A partir de então, passa a viver nos bosques e,
numa vida cheia de simplicidade, treina-se, desde os primeiros passos, no
lançamento do dardo e no uso do arco e, começa a abater, desde a sua meninice,
os animais do mato. Diana não foi esquecida, e este culto que Camila
lhe presta não deixa indiferente a filha de Latona que quase concede à sua
protegida o papel de semideusa e considera mesmo que ela possui um sacrum
corpus». In João Manuel Nunes Torrão, Camila, A Virgem Guerreira, Revista Humanitas,
volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.
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