«(…) Contudo nos últimos anos tem-se assistido ao aparecimento de
estudos que parecem colocar-se mais do ponto de vista do aprofundamento da interioridade
da obra, que da sua estrita divulgação. E o caso dos estudos citados dedicados
à poesia de Camões, ou ainda dos de Helder Macedo dedicados à poesia de Bernardim
Ribeiro, estudos esses que nunca poderão ser desligados daqueles outros dedicados
aos mesmos autores por Sampaio Bruno e Teixeira Rego, e ainda dos estudos de Yvette
Centeno e Dalila Pereira Costa, ambos dedicados à poesia de Fernando Pessoa. Outros
haverá ainda, que aqui me escapam e seria de justiça mencionar. É na linha de
todos eles, que este nosso estudo se pretende também situar, visando assim
minorar aquele desconhecimento em que a obra de Pascoaes vive, não tanto porque
fale dela, contribuindo para a sua consagração pública e oficial, mas muito
mais pelas preocupações que revela. Dizemo-lo de uma vez por todas: não é o
silêncio que nos preocupa. O silêncio que eventualmente envolve hoje a obra de Pascoaes,
por muitos inconvenientes que lhe traga a certos níveis, não é de modo nenhum
preocupante. Aquilo que verdadeiramente preocupa é aquilo que se possa dizer
hoje sobre Pascoaes, deturpando-o, alterando-o e domesticando-o como
antes se fez com Camões e depois com Pessoa. Um Pascoaes oficializado, com um saudosismo inofensivo
atrás de si, tratado sempre mais como excepção que como criador genial, é tão
ridículo como o Camões que nos deram a estudar no liceu ou o Pessoa que nos têm
dado hoje nos jornais, nas comemorações oficiais e até na publicidade
comercial. Em meu entender é preferível um autor esquecido, mas intacto, que um
autor consagrado, mas domesticado e deturpado. Jorge de Sena disse um
dia, e contra si próprio talvez o disse: … eu
bem sei, ou não tivesse lido algumas histórias literárias, quantos séculos de
inteligência são precisos para repor em termos justos o que foi desvirtuado por
alguns anos de concertada estupidez. Há verdades que não se afirmam
senão com a maior prudência e o maior cuidado; a verdade de Pascoaes é uma
delas.
Marânus foi publicado em 1911, situando-se desta forma num ponto
de todo intermédio, num espaço que é balizado pela publicação em 1909 da Senhora da Noite e pela publicação em 1912 de Regresso ao
Paraíso. Tanto um como outro destes dois poemas são paradigmas de uma
poesia que não precisa de ser acto duplo, para ser conhecimento e criação. No primeiro
caso, Pascoaes dá-nos uma interpretação quase sistemática da mecânica do
Cosmos, que alia a beleza ao pensamento, enquanto que no segundo ele nos dá uma
autêntica teogonia localizada, em que o verosímil da sua criação é já por si só
um verdadeiro juízo de conjunto. Em ambos os poemas a unidade do ser, cósmico
ou divino, não se acha dividida ou fracturada e não supõe uma homogeneidade do
absoluto, que aniquile o mal, Regresso
ao Paraíso, ou a noite, Senhora
da Noite. Essa unidade não fracturada é justamente aquilo a que Pascoaes
chama de saudade. Mas se o poema Senhora
da Noite fundamenta uma cosmologia que apreende na totalidade o ser do
Cosmos, e se Regresso ao Paraíso
firma os alicerces de uma outra teogonia em que a apreensão ontológica do
divino é dominante. Marânus
tende a ser a compreensão mítica ou cosmológica, isto é transcendental, do
homem, numa dimensão que tanto se rasga ao passado como se abre ao futuro». In
António Cândido Franco, Eleonor na Serra de Pascoaes, Edições Átrio, Lisboa,
Colecção o Chão do Touro, 1992, ISBN-972-599-042-0.
Cortesia de Átrio/JDACT