«(…) Chegaria rapidamente a San Simón o implacável anoitecer
de Dezembro e o meu observatório seria inútil, sem outro remédio senão ir até
ao cais à espera dos últimos transbordos do dia, decido, assim, antecipar o
breve passeio permitido pelas ilhotas unidas no seu canto da baía de Vigo,
apenas um pretexto terrestre que tinha cumprido funções de centro religioso,
templário, disputado por reis e bispos, conventual e sanitário, prolongado
lazareto, caserna, prisão de vermelhos durante e depois da guerra civil de 1936, albergue dentro da rede de Albergues
Nacionais do Movimento Nacional Sindicalista, lar para órfãos de
marinheiros, ruína e pré-ruína restaurada pela Xunta da Galiza para a converter em centro cultural, convocada uma
vez mais a cultura para tapar os horrores da vida e da história e transformar-se
na sua metáfora. - Você insiste em que a sede do encontro em sua homenagem seja
San Simón, don Júlio? Talvez em La Toja ou na Universidade de Santiago fosse
tudo mais amplo. - San Simón, se está em condições. - Esperemos que esteja.
Eu sabia da existência do projecto de remodelação de San Simón
como consequência de uma conferência no Club Faro de Vigo e a sua indutora,
Marisa Real, tinha-me facilitado uma visita às ilhas na companhia de dois
arquitectos, Pilar Rojo, da Consellería
de Cultura, e Pepe Pichel. Fiquei encantado com a assessoria dos meus
acompanhantes e pelo lugar, sobretudo por arqueologias emocionais tão diversas
como desafortunadas, sepultadas pelo tempo, agora ressuscitadas ou restauradas
por uma equipa técnica dirigida pelo arquitecto César Portela, e quando tive de
escolher o cenário da minha homenagem de aposentação lembrei-me que a conotação
cul-de-sac das ilhas, tão próximas e,
ao mesmo tempo, tão distantes da terra chamada firme, as convertia num palco de
despedida de um especialista em saberes tão arqueológicos como os medievais e
quase contemporâneo da arqueologia carcerária do lugar, segundo me tinha
informado na monografia de José António Orge Quinteiro, inventário de horrores
da repressão franquista. O conselleiro
de Cultura do governo autónomo, o senhor Perez Varela, forçou o andamento da
restauração e a minha homenagem terá um marco melhor ou pior acabado, mas
estará pronto nas ilhas unidas pela ponte tão sóbria como bela e rítmica, de
uma eficácia de engenharia militar bordado o granito por vegetações como
crostas, pátinas do tempo neste caso criadas pelas humidades do mar e das que
chegam com o vento através da ria. Mas antes de sair tenho de verificar a minha
tensão e o índice de açúcar no sangue e tiro o meu equipamento provisório para
verificar que estou com 11,7 e 7,5, uma excelente tensão, e, pelo contrário, apesar
das horas que já passaram desde o almoço tenho 180 de índice de açúcar, nada
alarmante ainda que limite com o heterodoxo. O ritual das verificações da minha
tensão arterial e as idas e vindas do que não tem um nome determinado mas que
poderá ser considerado uma sombra de diabetes, fazem parte dos sublinhados do
dia; e puxar a manga do meu punho esquerdo para receber a peça da máquina Omron
RX Matusaka-Japão ou procurar o dedo mais irrigado para receber a picadela do
Glucometer Elite são prazeres litúrgicos que substituíram a quase proibição do
álcool, que não respeito, e do tabaco, que, de facto, respeito. São actos que
exemplificam a vontade de me portar bem comigo mesmo, muito meritoriamente,
porque à minha volta não costuma haver habitualmente esse círculo protector
familiar que, observo, envolve os homens maduros ou os velhos ameaçados por
doenças crónicas e deteriorantes. A minha mulher, Madrona, cumpriu perfeitamente
um papel inicial de indutora a estas rotinas sanitárias, mas depois, como em
tudo, respeitou a minha liberdade de compromisso e decisão, tanto na matéria
arturiana como na prevenção da diabetes e da hipertensão.
No vestíbulo do pequeno hotel Stella Maris aguardam-me os cartazes
que anunciam o acontecimento que começará depois de amanhã:
- Homenagem ao professor emérito Jútio Matasanz das Reais Academias da Historia e da Língua. Simposium: A regeneração de um mito arturiano Erec e Enide. Com o patrocínio da Xunta da Galiza, da Real Academia da Língua Espanhola, Real Academia da Historia, Universidade de Barcelona, Yale University, Universidades de Vigo e de Santiago de Compostela e da Societe Arturienne.
Toda esta informação está colocada sobre um fundo que reproduz
o perímetro da gravura de Dürer O
Cavaleiro, o Diabo e a Morte. Não
tive qualquer intervenção na escolha do motivo gráfico e se me tivessem
consultado eu teria proposto uma outra alternativa, sobretudo nestes tempos em
que os assuntos arturianos se estudam na sua relação com o miniaturismo a que
deu lugar, miniaturismo tão presente na formidável edição dos manuscritos de
Chrétien de Troyes a cargo de Bushy Kates. A gravura de Dürer desagrada-me
porque fiquei desencantado com ela numa determinada altura. Tinha-a visto
tantas vezes reproduzida e tantas vezes a tinha imaginado, apesar da sua
condição de gravura, como uma impressionante e quantitativamente importante
peça, que quando pude ver o original pareceu-me uma minúcia que atraiçoava a transcendência
do assunto, como se fosse a própria prova de que maniére e matiére se
podem dissociar. Talvez me desagrade também que se teria seleccionado a
impossível dialéctica entre cavaleiro e a morte para a sessão final da minha
própria carreira universitária, da minha própria vida e, no fim de contas, eu
mesmo tenha contribuído para a construção do meu imaginário: um cavaleiro do
trabalho intelectual bem executado que invade os últimos anos que lhe atribui o
código genético como os cavaleiros medievais invadiam os bosques aparentemente
proibidos para os desvelar». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide,
2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.
Cortesia de Difel/JDACT