terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O Conto da Sereia. Lenda dos Marinhos. Gonzalo Ballester. «Josefina explicou-me, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como que a mais sabida, a história da Sereia e os trâmites da cor e das escarnas. Bom mas vocês acreditam nessas balelas?»

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«(…) Eu receio que não tenha sido assim, salvo para a velha dona Rolendis, a tia Rula, que me pareceu trocista, singela e com certo senso de humor; mas de modo algum para a nora dela, a tia Eugénia, que era quem governava na casa e que quase não me deu a mão nem me olhou de frente, embora com a minha noiva extremasse os salamaleques e beijocas. A dita tia Eugénia, viúva havia poucos anos, conduzia como um homem a casa e o negócio dos barcos e encaminhava cada um dos seus filhos. Eu conheci três naquela ocasião: Payo, que era ainda um rapaz e estudava para piloto, e as duas meninas gémeas, que não sei por que graça se chamavam como as filhas do Cid: embora o saiba, ou o suponha: a tia Eugénia vinha das terras do tio Arlanza e trouxera a sua particular mitologia e a sua escala de valores, que tentava impor a toda a gente com grande regozijo da sogra, que não parecia levá-la a sério e que também tinha maneira própria de pensar. A tia Eugénia dormia a sesta, e graças a este costume as horas que passei naquela casa tornaram-se um pouco menos aborrecidas e humilhantes, porque ao ficarmos sós a tia Rula despachou-se a seu bel-prazer e fez-nos rir com histórias locais e até familiares, e a certa altura disse à Josefina: … porque não levas o teu noivo a ver a cruz? Já sabes onde está a chave. Não sei se o fez para que ao encontrar-nos na solidão daquele jardim secreto separado do outro, do oficial e visível, que eu já vira por um tapume de hera e uma porta ferrugenta, pudéssemos beijar-nos; mas a minha noiva, que era bastante inocente ou pelo menos tanto como eu, cumpriu a ordem e mostrou-me uma cruz de pedra escondida de todos, no fuste de cuja coluna podiam ler-se nomes e nomes de chamados Marinho, em galego os mais antigos, em castelhano os últimos dois ou três, com esta legenda por baixo: Morto no mar, Muerto en la mar. Este é o marido da tia Rula, disse-me por um dos últimos, e estoutro, o filho, o marido da tia Eugénia. Também morreu afogado? Morreu; tinha os olhos azuis. E como eu lhe perguntasse que tinha que ver uma coisa com a outra, Josefina explicou-me, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como que a mais sabida, a história da Sereia e os trâmites da cor e das escarnas. Bom mas vocês acreditam nessas balelas?, perguntei-lhe. Eu nem acredito nem deixo de- acreditar. No resto da família, todos. A tia Rula, mais do que ninguém, embora não deixasse de fazer das próprias crenças matéria para as suas troças. Explicaste ao teu noivo aquilo dos mortos? Expliquei, claro. E que te disse ele?, perguntou-lhe, mas olhando para mim. Ficou calado, a pensar. E agora está na mesma. Insistia em olhar para mim, e dirigiu-se-me francamente: Não serás tu como a minha nora, não é verdade? A minha nora não acredita em velharias, mas o filho Alfonso tem os olhos azuis e ela levou-o para longe do mar e não tornámos a vê-lo em Vilaxuán. Lá o tem em Castela, como que preso, e quando o queremos ver, pois temos que ir a Castela em peregrinação para que o rapaz não se abeire e não corra o perigo de que a Sereia o leve. Como se com a Sereia valessem subterfúgios! Calou-se um instante e baixou a voz: Olhai, o meu marido deixou os barcos ainda novo e arranjou um trabalho em terra porque eu não queria que corresse aquele perigo, e ele fê-lo para me comprazer. Mas chegou a altura em que deviam roubar-mo, e muitas madrugadas eu ouvia, desvelada, a voz da Sereia que o chamava. Muitas noites, muitas! Não dizia nada ao meu marido, engolia aquele espanto solitário, mas o cantar da Sereia, mesmo ali ao pé do nosso cais, acordava-me e não só a mim: muita gente da vila também a escutava e diziam que vinha reclamar o que era seu». In Gonzalo Torrente Ballester, El Cuento de la Sirena, Dafne Ensueños, O Conto da Sereia, Lenda dos Marinhos, Difel, Lisboa, 1986.

Cortesia de Difel/JDACT