«(…) Eu receio que não tenha sido assim, salvo para a velha dona
Rolendis, a tia Rula, que me pareceu trocista, singela e com certo senso de
humor; mas de modo algum para a nora dela, a tia Eugénia, que era quem
governava na casa e que quase não me deu a mão nem me olhou de frente, embora
com a minha noiva extremasse os salamaleques e beijocas. A dita tia Eugénia,
viúva havia poucos anos, conduzia como um homem a casa e o negócio dos barcos e
encaminhava cada um dos seus filhos. Eu conheci três naquela ocasião: Payo, que
era ainda um rapaz e estudava para piloto, e as duas meninas gémeas, que não
sei por que graça se chamavam como as filhas do Cid: embora o saiba, ou o
suponha: a tia Eugénia vinha das terras do tio Arlanza e trouxera a sua
particular mitologia e a sua escala de valores, que tentava impor a toda a
gente com grande regozijo da sogra, que não parecia levá-la a sério e que
também tinha maneira própria de pensar. A tia Eugénia dormia a sesta, e graças
a este costume as horas que passei naquela casa tornaram-se um pouco menos
aborrecidas e humilhantes, porque ao ficarmos sós a tia Rula despachou-se a seu
bel-prazer e fez-nos rir com histórias locais e até familiares, e a certa
altura disse à Josefina: … porque não
levas o teu noivo a ver a cruz? Já sabes onde está a chave. Não sei se o
fez para que ao encontrar-nos na solidão daquele jardim secreto separado do
outro, do oficial e visível, que eu já vira por um tapume de hera e uma porta
ferrugenta, pudéssemos beijar-nos; mas a minha noiva, que era bastante inocente
ou pelo menos tanto como eu, cumpriu a ordem e mostrou-me uma cruz de pedra
escondida de todos, no fuste de cuja coluna podiam ler-se nomes e nomes de chamados
Marinho, em galego os mais antigos, em castelhano os últimos dois ou três, com
esta legenda por baixo: Morto no mar,
Muerto en la mar. Este é o marido da tia Rula,
disse-me por um dos últimos, e estoutro,
o filho, o marido da tia Eugénia. Também
morreu afogado? Morreu; tinha os
olhos azuis. E como eu lhe perguntasse que tinha que ver uma coisa com a outra,
Josefina explicou-me, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como que a
mais sabida, a história da Sereia e os trâmites da cor e das escarnas. Bom mas vocês acreditam nessas balelas?,
perguntei-lhe. Eu nem acredito nem deixo
de- acreditar. No resto da família, todos. A tia Rula, mais do que ninguém,
embora não deixasse de fazer das próprias crenças matéria para as suas troças. Explicaste ao teu noivo aquilo dos mortos?
Expliquei, claro. E que te disse ele?,
perguntou-lhe, mas olhando para mim. Ficou calado, a pensar. E agora está na mesma.
Insistia em olhar para mim, e dirigiu-se-me francamente: Não serás tu como a minha nora, não é verdade? A minha nora
não acredita em velharias, mas o filho Alfonso tem os olhos azuis e ela levou-o
para longe do mar e não tornámos a vê-lo em Vilaxuán. Lá o tem em Castela, como
que preso, e quando o queremos ver, pois temos que ir a Castela em peregrinação
para que o rapaz não se abeire e não corra o perigo de que a Sereia o
leve. Como se com a Sereia valessem subterfúgios! Calou-se um instante e
baixou a voz: Olhai, o meu marido deixou os barcos ainda novo e arranjou um trabalho
em terra porque eu não queria que corresse aquele perigo, e ele fê-lo para me
comprazer. Mas chegou a altura em que deviam roubar-mo, e muitas madrugadas eu
ouvia, desvelada, a voz da Sereia que o chamava. Muitas noites, muitas!
Não dizia nada ao meu marido, engolia aquele espanto solitário, mas o cantar da
Sereia, mesmo ali ao pé do nosso cais, acordava-me e não só a mim: muita
gente da vila também a escutava e diziam que vinha reclamar o que era seu». In
Gonzalo Torrente Ballester, El Cuento de la Sirena, Dafne Ensueños, O Conto da
Sereia, Lenda dos Marinhos, Difel, Lisboa, 1986.
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