Guisado de cumplicidades
«(…) A ela foi dado o mandato de a todos chamar da
posição horizontal para a posição vertical, do material para o espiritual, pois todo o mortal é como a erva e todo o
seu esplendor é como a flor da erva. A erva seca, as flores murcham, mas a
palavra do Senhor permanece eternamente. A Igreja é a custódia desta palavra,
mas quando enfraquece a vigilância não resiste por muito tempo sem entrar
também ela em crise.
A mula do pontífice
A sátira e o humor são importantes em qualquer
sociedade; só os regimes não sabem apreciar o seu verdadeiro papel. Um governo
que não aceita a discussão de opiniões diferentes, pouco a pouco, resvala no
regime, que entende não precisar das sugestões dos subordinados, a quem apenas
se dá a liberdade de aprovar sem recriminações, o que é a estatolatria. O governo
que quer melhorar encoraja a crítica, capitalizando as que são justas; o
governo que não permite a circulação de um indispensável humor afoga o povo no
tédio da indiferença. Quando crescem a suspeita, o rancor e o ciúme em relação
aos mais dotados e mais capazes, o ambiente, fechado à abertura aos valores,
torna-se um ambiente de tirania. A crítica e m termos moderados supõe democracia.
O déspota com a obsessão do respeito pela respectiva autoridade, isto é, pelo
culto da sua pessoa, cala a boca do sátiro, irreverente e dessacralizado, para
que, ocultando-os, não ridicularize os seus defeitos. A propósito daquele que
contraria um prelado proeminente, ou o seu Rasputin, cita-se o que Afonso
Daudet conta sobre o coice que a mula do papa deu, sete anos depois, ao jovem
empregado da estrebaria, em Avinhão: Quand
on parle d'un homme rancunier vindicatif, on dit: Cet homme-là, mefiez-vous! Il est comme la mule du Pape, qui garde sept ans son coup de pied..., il
n’y a de plus bel exemple de rancune ecclésiastique. (Quando se fala de um homem
rancoroso e vingativo, costuma dizer-se: Acautelai-vos desse homem! Ele é como
a mula do Papa que esperou sete anos para dar o seu coice..., não há melhor exemplo
do rancor eclesiástico).
Surge, então, a murmuração incontrolável como
espaço sombrio de comunicação e indício de estagnação sem retorno, que envenena
o ambiente e se multiplica livremente em piadas sarcásticas e perversas.
Verdadeiros pasquins, grosserias viperinas e imaginosas percorrem os corredores
dos gabinetes. Semelhante crítica é escova dura que desgasta as vestes
delicadas sobre os ombros dos superiores. Fernando II de Nápoles punha a
circular, ele próprio, alegres historietas por sua própria conta, para acalmar
a cólera nos súbditos que, de facto, rindo-se a propósito delas, se tornavam
mais serenos. Não é costume da cúria romana apreciar a liberdade de expressão.
É assim que, por temor do ridículo, renuncia ao que é nobre, para cair no que é
cómico e grotesco e, às vezes, trágico. A lei do silêncio ultrapassa o ridículo
quando se estabelecem os acordos para atingir o poder. Mas o pequeno poder da
divergência, mesmo se provinda de oficiais contactados em separado, tem a sua
importância e a sua publicidade que não é avisado descurar. Os curialistas
insatisfeitos refugiam-se instintivamente na crítica mais ou menos exagerada e
até imprudente. É um grande vozear em surdina, como um zumbido ritmado de um
enxame de abelhas no cortiço. São, todavia, polémicas mais de forma que de
substância, que não atingem o culto devido ao mito, que continua à vontade.
Fazem-se cócegas na cabeça, não nas axilas, dizia Renato Rascel». In I
Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra
Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN
972-46-1170-1.
Cortesia Casa das Letras/JDACT