Ainda no meio da vida,
já estou cansado como se fosse nos confins do seu entardecer. Tenho a cabeça
branca e a alma devastada pela fúria de todos os ciclones. In António José de Almeida.
Memórias da tia Graça
«(…) O trabalho ainda está muito atrasado. A Albertina tem
que ficar calma, isto vai ser duro, mas lembre-se de que tudo o que sofre é pelo
seu filho. Foram dois dias e duas noites de padecimento atroz, a violência das
dores era tal que por vezes ela perdia a consciência e isso era um bálsamo. A
parteira foi obrigada a amarrar-lhe os braços e mesmo assim os espasmos vinham-lhe
tão fortes que a cabeça, ao embater na cabeceira da cama de mogno, a rachou de
alto a baixo. Albertina nunca quis desfazer-se dela, foi um testemunho que ali
ficou para mostrar à posteridade o seu martírio. Júlio fora proibido de entrar
no quarto. Doido de aflição, descontrolado, ai
se ela morre, porque não nasce a criança?, só causava incómodos,
qualquer dor o impressionava, mas este sofrimento terrível, este martírio...,
não aguentava vê-la, torcendo-se em agonias, impotente, sem poder acudir-lhe.
Agarrava-se ao irmão, chorando como um menino, ela vai morrer, ela vai morrer!, e António consolava-o, como anos
atrás, quando Júlio tivera a sífilis. Albertina já não sabia quem era, perdera
a noção do tempo, se era noite ou se era dia, a única coisa viva era o seu
ventre volumoso que se contorcia, rebentava, em estertores tremendos. O médico,
preocupado pela demora, vinha várias vezes ao dia já não podemos operá-la, a cabeça está encaixada, ela é, muito estreita
de ancas, assim o coração aguente. O coração aguentou. E na tarde do dia
doze de Outubro de 1891, nascia uma
menina de quatro quilos que imediatamente gritou bem alto a proclamar o seu
lugar no mundo. A mãe estava tão fraca que, ao ouvir-lhe os berros, nem se
regozijou, só depois, mais tarde, quando lhe voltaram as forças. Mas logo as
dores desapareceram e adormeceu confortada com a missão cumprida, já nasceu e é
saudável. Entretanto chegara um telegrama da irmã da parturiente, Matilde Reis
Torguim, a perguntar se tudo corria bem, porque Elvirinha, a outra irmã, tivera
uma das suas visões onde descortinava Albertina envolta em labaredas, gritando
numa angústia de alma danada, que se lhe pegara, ai a minha irmã, ai a minha irmã! Isto passara-se na véspera do
nascimento da criança e ela logo contara a Matilde, o papá não pode saber, mas por amor de Deus mana, fala com a Albertina
para que eu possa rezar com acerto. E Matilde mandara o telegrama porque
lhe conhecia os poderes divinatórios e todos na Bairrada vieram a saber que a estranha
donzela os tinha.
Albertina encantou-se com a filha, num apego de fêmea, mas a
natureza não ajudava, o peito que oferecia amorosamente não funcionava bem, o
leite não saía, novas dores lancinantes vieram com os caroços, ó meu amor, porque não queres o meu leite?,
a febre abateu-a ainda mais, lembrava-se da tortura de sua própria mãe que morrera
de infecções da mama, se ela se lembrava!, fora o seu primeiro desgosto. Por
fim já saía leite com sangue e pus, teve que se procurar uma ama para que desse
à filha alimento mercenário, são destas injustiças que a lei humana não prevê,
mãe tão extremosa e tantos embaraços lhe vinham. Não pense nunca mais em amamentar, só lhe trará complicações,
dissera Daniel Mattos e ela aceitara, se tanto sofrimento lhe era imposto,
algum mérito sobraria para o futuro. Rodeava a pequenina de cuidados, numa
inveja triste da ama que se deixava sugar com tal despejo». In
Maria Luísa Beltrão, Os Impetuosos, 1994, Editorial Presença, Lisboa, 1998,
ISBN 972-23-1857-8.
Cortesia de EPresença/JDACT