O
‘pobre homem’ que não queria reinar
«(…)
Escreve Philippe Erlanger num bem elaborado trabalho: Na verdade, os Capetos não deixaram jamais de atravessar o círculo
infernal das revoluções. Carlos V, ainda delfim, foi enlameado com o sangue dos
seus servidores mais próximos, massacrados pelos homens de Etienne Marcel, e
sofreu a Jacquerie camponesa. Tendo assistido, em criança, às insurreições
dos Maillotins ou Tuchins, prontos a degolar todos os que não tivessem as mãos
calosas, Cados VI, já adulto e louco, soube, entre dois acessos, que as muralhas
das bastilhas não resistiriam ao furor popular (1413). Dois terços da França levantaram-se em armas
contra Luís XI. Em 1589, Henrique
III, excomungado, cercado, reinava apenas em três cidades: Tours, Blois e
Beaugency. Henrique IV conquistou seu reino pedaço a pedaço. As guerras civis
encheram o reinado de Luís XIII. O próprio Luís XIV foi obrigado a fugir de
Paris, transformada em rio de sangue, e a errar, meio proscrito, sob a
protecção de Turenne.
Tudo
isso Luís XVI teria visto nessa visão retrospectiva, que o confortaria
salutarmente, se não fosse o medo, o terror que se lhe aninhava no ânimo tíbio e
o aprisionava dos seus efeitos desencorajantes. A sua fraqueza e indecisão, dizia dele o duque de Provença, seu irmão,
estão além de tudo o que se possa classificar. Imaginem-se bolas de marfim oleosas,
que em vão tentaremos manter juntas, e teremos uma alegoria perfeita do seu
carácter. Ele é somente um pobre diabo, ou, como os seus contemporâneos o
apelidavam, um Rapaz Grande. Os
revolucionários, apreendendo a maneabilidade que tal espírito lhes oferecia, não
fizeram mais do que estender o braço e agarrar firmemente a magnífica oportunidade
para lhe fazerem a vida negra.
Luís
XVI, demasiadamente
honesto, sonhando com a felicidade do seu povo, aplicava-se com desvelo
em satisfazer-lhe os anseios, só muito tarde aprendendo à sua custa,
amargamente, que quanto mais cedesse mais os insaciáveis revolucionários lhe exigiriam.
Tal política, era fatal, não podia agradar a todos e os próprios que ficavam
satisfeitos não demoravam a recair na insatisfação. Identificado, pela História da Rebelião do conde de
Clarendon, um dos seus livros predilectos, sobre a vida de Carlos I da
Inglaterra (o Capeto tinha,
também, sangue Stuart nas veias!) estudara pacientemente o seu reinado,
prometendo a si próprio não cair nos mesmos erros que haviam levado aquele
remoto parente ao patíbulo. Na realidade, ambos caminharam para um mesmo trágico
e semelhante fim, embora por sendas distintas e opostas entre si, absolutamente
antagónicas. Carlos I era um fantasma medonho que povoava frequentemente os
sonhos do Capeto, o que, é de crer,
mais pavorosa lhe tornaria, ainda, a árdua missão de reinar.
Maria
Antonieta, a rainha, por seu turno, levava uma existência que não podia escapar
à maledicência e à calúnia, e participava, de forma activa, nos actos de pura
administração, em medidas nem sempre consentidas pelas circunstâncias. A
impopularidade dela foi crescendo, crescendo, arrastando-o a ele na mesma onda
de desfavor público. Com a convocação do Parlamento e os motins a que aquela
deu causa, as coisas pioraram para a realeza, A monarquia ia-se tornando
gradualmente execrável para toda a gente, excepto para os favorecidos. O povo
estava, agora, a viver numa exaltação contínua, estimulada pelos jornais
revolucionários e pelos oradores populistas. Um rio de literatura malsã,
difamatória, encharcava, subvertia a reputação da corte, preparando
irresistivelmente a atmosfera para os próximos futuros acontecimentos, que
irrigariam de sangue o solo francês. No entanto, como a época era de festas
atordoantes, só raros aristocratas teriam a noção exacta, nessa altura, de que
a realeza estava caminhando vertiginosamente para o abismo. A terrível verdade
só um pouco mais tarde, quatro anos depois, se tornaria evidente, horrorizando,
pelas suas consequências imprevisíveis, aqueles próprios que haviam contribuído
decisivamente para a decadência do trono». In Américo Faria, Dez Monarcas Infelizes, Livraria
Clássica Editora, colecção 10, Lisboa, s/d.
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