«O João Martins, mais conhecido pelo
nome de João da Agualva,
porque morava na pequena aldeia deste nome, que fica entre Belas e o Cacém num
sítio árido e feio, fora mestre de instrução primária numa das freguesias do
concelho de Sintra. Conseguira a sua aposentação, e viera para a sua aldeia
natal amanhar umas terras que ali possuía, e cujo rendimento o impedira já de
morrer de fome nos tempos, em que o Estado lhe pagava munificentemente os
noventa mil réis anuais, com que remunerava nessa época os primeiros guias do
homem nos ásperos caminhos da instrução. Mas o João da Agualva era homem de uma
ilustração excepcional. Convivera muito tempo com o prior de Montelavar, padre
instruído que emprestara ao bom do professor os livros da sua limitada
biblioteca; em Belas também se relacionara com um engenheiro francês, empregado
nas obras de água de Vale de Lobos, de Broco e de Vale de Figueira, o qual
tomara gosto em desenvolver o espirito inteligente e ávido de saber do velho
professor. Apesar disto vivia modestamente na sua pobre casa, lidando com os
saloios que o tratavam com verdadeiro respeito, e tinham por ele um afecto em
que entrava um pouco de veneração. Era no Inverno, e o João da Agualva estava
passando a noite em casa de uma boa velha, a tia Margarida, viúva de um caseiro
do marquês de Belas, e mãe do Francisco Artilheiro, que, depois de ter servido
cinco anos em artilharia, como indicava o seu sobrenome, viera para Belas
ajudar a mãe a cuidar de umas leiras de terra, que a velhinha herdara do
marido. Um grupo de saloios de Belas e das aldeias próximas, sabendo que o João
da Agualva viera para ali seroar, tinham vindo também, desejosos de ouvir algumas
das histórias que o velho às vezes contava e que entretinham agradavelmente a
noite. Nessa ocasião, porém, o professor estava macambúzio, e, quando o velho
Bartolomeu, irmão da tia Margarida, que era dos que mais gostavam de o ouvir,
lhe pediu que contasse alguma das suas histórias, o bom do João da Agualva
abanou negativamente a cabeça. Não estou hoje com disposição para histórias da
carochinha, disse ele, e sabem vocês?
Tenho andado a matutar numa coisa. Não é uma vergonha que vocês saibam de cor
as alteadas histórias de coisas que nunca sucederam, nem podiam suceder, e não
saibam ao mesmo tempo nem o que foram seus pais nem os seus avós, nem o que
fizeram, nem como eles viveram, nem o que sucedeu nesta boa terra de Portugal,
que nós todos regamos com o nosso suor, que hoje nada vale, mas que deu brado
no mundo pelas façanhas que os nossos
praticaram? Tomara eu saber tudo isso, João da Agualva, disse o Manuel
Idanha, rapazote de cara esperta, moço de lavoura de Garignan, o antigo dono de
colégio, que hoje reside na aldeia da Idanha, a coisa de quinhentos metros de
Belas, tomara eu saber tudo isso, mas como há de ser!? É verdade que, graças a
Deus, sei ler e escrever, e lá o patrão emprestou-me uma vez uns livros de
história que eu lhe pedi, mas, mal os comecei a ler, deu-me o sono. Diziam à
gente os nomes dos reis e os filhos que tinham tido, e as batalhas que tinham
ganho, e mais umas lenga-lengas de que
não percebi patavina. Ora, João da Agualva, eu, para dormir, graças a Deus,
ainda não preciso de ler história. Mas que diriam vocês, tornou o velho
professor, se eu, nestes nossos serões, lhes contasse, em vez de contos de
fadas, e de histórias de Carlos Magno, a
história do que sucedeu em Portugal? Talvez vocês me entendessem,
quer-me parecer que se não aborreceriam muito, e, em todo o caso, se se
enfastiassem, diziam-mo francamente, e eu não continuava, porque lá para
maçador é que não sirvo. Ah! João, exclamou o Manuel Idanha, isso é que era um
regalo! Os outros não disseram palavra, e o João, que os percebeu, riu-se para
dentro, e fingiu-se desentendido. Pois então, vá feito, eu hoje estou cansado,
porque já fui a pé ao Sabugo tratar da compra de um boi, mas amanhã é domingo.
Venham vocês à noite aqui para casa da tia Margarida, e eu começarei a minha
história. No domingo á noite ninguém faltou; mas, se vieram, foi pelo respeito
que tinham ao João da Agualva, não porque esperassem divertir-se muito. O
Bartolomeu já abria a boca ainda antes do João da Agualva começar. Mas o João
chegou-se mais para o lume, porque a noite estava fria a valer, sorriu-se…
Meus amigos, começou o João da Agualva,
é de saber que esta terra em que nós vivemos nem sempre foi Portugal, e, se
alguém se lembrasse de falar, aqui há coisa de uns três ou quatro mil anos ou
mesmo só de mil anos, em Portugal e em portugueses, havia de ver como todos
ficavam embasbacados sem perceber patavina. Isto lá para os antigos era tudo
Espanha, desde os cocurutos dos Pirenéus, que são uns montes que separam a
Espanha da França, até essas águas do mar que cercam por todos os lados a nossa
terra, mais a dos espanhóis, e até por estar este pedação de terra cercado de
água por toda a parte, menos pela banda dos Pirenéus, é que se chama a isto península,
que quer dizer uma coisa que é quase uma ilha, mas que o não vem a ser de todo.
Bem sei, bem sei! Península é onde houve uma guerra em que entrou meu avô!,
exclamou o falador do Manuel Idanha. Mete a viola no saco, Manuel, quem muito
fala pouco acerta. Lá chegaremos à guerra da península. Roma e Pavia não se fez
num dia.
Pois então, vá lá vossemecê contando a
sua história. Como eu ia dizendo, esta península, a que se chama Espanha e
Portugal, era então só Espanha. Espanhóis éramos nós todos... Menos eu!,
acudiu o Bartolomeu, levantando-se todo furioso, espanhol é que nunca fui,
nem sou, nem serei. Vai aqui tudo raso, se... Espera, homem de Deus! Que tem
que tudo isto fosse espanhol se nunca
mais o há de ser? Também a Espanha, e a França, e a Inglaterra, e a
Itália, e a Grécia, e o Egipto foi tudo império romano, e vai lá dizer agora a
essas nações todas que se sujeitem ao mesmo governo! Também a França dantes se
chamava Gália e estendia-se pela Bélgica fora, e mais pela Suíça, e, se o
Gambeta, ou quem é que governa lá na França, quisesse por isso empolgar a Suíça
e a Bélgica, ia aí em toda a Europa uma berraria de seiscentos demónios. Pois
sim, resmungou o Bartolomeu sentando-se de mau humor, mas não me digam a mim
que eu fui espanhol. Ora, meus amigos, quem foram os que primeiro moraram
cá neste canto de terra é que ninguém sabe. Seriam uns iberos, que falavam uma
língua arrevesada, assim a modo semelhante á que falam hoje os espanhóis das
Vascongadas que nem o demo entende? Isso é que lhes não
posso dizer. O que sei é que, quando a Espanha começou a ser conhecida, havia
aqui uma sucia de povos que era uma coisa por demais, turdetanos para um lado,
celtiberos para outro, ilergetes para aqui, bastetanos para acolá. Estava até
amanhã a dizer-lhes nomes estrambóticos, se não preferisse falar-lhes só nos
nossos avós, cá nos que moraram na nossa terra». In Manuel Pinheiro Chagas, História
Alegre de Portugal, Wikipédia, Luso Livros, Nova Forma de Ler.
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