segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Rainha e Mulher. Cleópatra. Terenci Moix. «Como homem preparado há tempos, como um valente, dá o teu adeus a Alexandria, que se afasta. Não te enganes, não digas que foi um sonho. Não aceites tão vãs esperanças»

Cortesia de wikipedia e jdact

Cleópatra
«Cleópatra Sétima, rainha do Egito, amante de Júlio César e de Marco António, soberana de um império em decadência cujas fronteiras sonha ampliar para muito além dos limites a que chegaram os antigos faraós. Uma vulgar prostituta? Uma criatura ambiciosa que não hesita em matar para concretizar os seus projectos? Uma destruidora de homens? Neste belo romance de amor e morte, ganhador do Prémio Planeta de 1986, o mais importante da literatura espanhola, o escritor catalão Terenci Moix mostra uma outra verdade sobre essa mulher deslumbrante, dona de vasta cultura e de enorme habilidade política, uma das personagens mais fascinantes da História. Tendo como principal cenário a mítica Alexandria, Terenci cria um vigoroso romance que resgata uma das personagens mais fascinantes da História: Cleópatra Sétima, rainha do Egipto. A célebre soberana aparece aqui como uma mulher de extraordinária cultura, apaixonada e ambiciosa, que acalenta o sonho de transformar a sua Alexandria na capital de um vasto império, do qual Cesário Ptolomeu, seu filho com Júlio César, seria o chefe supremo. Seu amor por Marco António, retratado como um soldado grosseiro, colecionador de derrotas políticas e militares, insere-se nesse projecto grandioso. Mesclando ficção e realidade, Terenci leva o leitor a transportar-se no tempo e no espaço para conviver com egípcios e romanos, sacerdotes e prostitutas; para participar de batalhas e cerimónias místicas; e para conhecer intrigas que determinaram a queda e a consolidação de dois impérios. Desse modo é elaborado um deslumbrante painel da Antiguidade, merecedor do Prémio Planeta. O romancista catalão Terenci costuma dizer que nasceu em algum ano da década de 50, no século XX, com um pé em Alexandria e outro em Barcelona. Em 1968-1969, irrompeu no mundo da literatura com La torre de los vícios capitales e Olas sobre una roca desierta, que, aplaudidos pela crítica internacional, lançaram-no de imediato a uma posição de destaque dentro da nova geração de escritores espanhóis. Ganhador de cinco troféus importantes da literatura catalã, Terenci conquistou, em 1986, o Prémio Planeta, com o romance Cleópatra, rainha e mulher (No digas que fue un sue-no). Opera, teatro, pintura e cinema (uma de suas obras mais famosas é justamente O dia em que Marilyn morreu, publicado pela Editora Globo) igualmente despertam o seu interesse e inspiram-lhe numerosos artigos e romances». In Prefácio

«Quando à meia-noite se ouvir
passar uma invisível folia
com música maravilhosa e grandes vozes,
tua sorte que declina, tuas obras fracassadas,
os planos de tua vida que não deram certo,
não chores em vão.
Como homem preparado há tempos,
como um valente,
dá o teu adeus a Alexandria, que se afasta.
Não te enganes,
não digas que foi um sonho.
Não aceites tão vãs esperanças.
Como homem preparado há tempos,
como um valente,
como convém a quem de tal cidade foi digno,
aproxima-te com passo firme da janela
e ouve com emoção, não com lamentos
nem súplicas de fracos, como derradeiro prazer,
os sons, os maravilhosos instrumentos da
folia misteriosa,
e dá o teu adeus a esta Alexandria
que perdes para sempre».
Poema de Cavafis, in ‘O deus abandona António’

«Ela era o último membro de uma raça solitária e subtil. Era uma flor que Alexandria havia tardado trezentos anos a produzir e que a eternidade não pode murchar. E abriu-se ante um soldado romano, simples mas inteligente... In Forster, Alexandria

Serpente do Nilo
«E disse a mulher: Maldito seja Amor, que me assassina. Tingi de morte o Nilo. Cobri de luto as nuvens. Convertei o Egipto em sepulcro. E assim se fez. O pavor foi descendo pelo rio. A morte instalou-se nas suas margens. E caiu o inferno sobre o universo. Cumprida a ordem, uma densa nuvem negra cobriu os céus nos quais nunca há nuvens. Tão insólita era que se diria o véu de uma deusa traiçoeira. Dir-se-ia sangue apodrecido gotejando sobre os frondosos palmeirais, as florestas de papiros, os pomares e jardins que um dia foram férteis. Uma galera real vogava com majestosa lentidão em busca dos confins mais remotos do reino, onde este se perde nos desertos que correm em busca das selvas ignotas, onde dizem que nasce o rio santo. O negror chegava acompanhado por hinos tão tristes quanto o dia. Era a percussão incessante de cem timbales doloridos. Era o bater de cem remos nas águas, por sua vez tão tristes que também se tornaram negras. As ribeiras encheram-se de camponeses procedentes dos vilarejos mais próximos. Chegavam em procissão, e nos seus rostos enrugados, nas suas rugas sulcadas pelo sol de muitos séculos, o espanto alternava-se com o medo. Jogavam-se no chão, escondiam a cabeça entre os juncos, golpeavam o peito com pedras afiadas e esfregavam os olhos com lodo, como se vem fazendo desde os tempos mais remotos quando morre um monarca ou quando a natureza interrompe o seu curso inexorável, porque os deuses não estão satisfeitos. A nuvem negra pousava sobre todas as cores da paisagem, tão sensível nos albores do mês de Atir, quando a luz já não chega, esgotada pelos flagelos do estio. Os palmeirais e os trigais, os bosques de sicómoros, as mimosas, os hibiscos, as heras que sobem pelos palácios, tudo que ontem foi uma profusão de esplendoroso colorido ficava encerrado naquela cor única, manto sinistro que os camponeses, aterrados, não podiam reconhecer. Pois ignoravam o tipo de perfume de cuja mescla brotava. Perfumes que os escravos negros da nave espargiam por toda parte. Perfumes das noites de Alexandria! Emanações entre-mescladas de sândalo, almíscar e ambarina; essências de incenso, patchuli e da mirra que adormece os sentidos; flutuações de heliotrópio e açucenas combinadas com o sumo oleoso que as gardénias destilam quando roçam o sexo de uma virgem nabateia. Em contacto com o ar, a mescla tingia-o de luto. E, assim empeçonhadas, as auras caíam sobre os camponeses como uma condenação. A noite mais pavorosa apoderava-se do dia. Todos interpretaram aquilo como um augúrio do final do universo, segundo se anuncia nas inscrições dos templos antigos. Os camponeses acolheram a catástrofe salmodiando cantos mortuários aprendidos nos grandes funerais e transmitidos de uma geração a outra. Quando os escravos que espargiam os perfumes descansavam um instante, a nuvem artificial se diluía. Em meio a uma breve pausa, semelhante a um amanhecer, surgiam como um consolo as águas familiares do Nilo e, sulcando-as, uma soberba proa em forma de papiro. E, sobre as estrias rosicleres que seu avanço abria na corrente, emergia a embarcação de Cleópatra Sétima». In Terenci Moix, Cleópatra, Rainha e Mulher, Prémio Planeta, Espanha, Editora Globo, 1989, ISBN 852-500-662-9.

Cortesia de Globo/JDACT