«(…) Ao longo dos seus primeiros cinco anos em Maycomb, Atticus exerceu
acima de tudo Economia; depois, durante os anos subsequentes, decidiu investir os seus rendimentos na
educação do irmão. John Finch era dez anos mais novo que o meu pai e decidiu optar
por Medicina numa altura em que o algodão não estava a render; porém, só depois
de dar uma mãozinha ao tio Jack, é que Atticus começou a tirar um lucro
razoável da advocacia. Nado e criado em Maycomb, gostava de Maycomb, conhecia a
sua gente, eles conheciam-no e, devido à prole de Simon Finch, Atticus era parente
de sangue ou por casamento de quase todas as famílias da cidade. Maycomb era
uma cidade velha, mas quando a conheci era uma cidade velha e cansada. Com o
tempo chuvoso as ruas transformavam-se em lodo avermelhado; a erva crescia nos
passeios e o velho tribunal vergava-se sobre a praça. Seja como for, naquela época
o tempo era bem mais quente: qualquer cão preto penava num dia de Verão;
perante o calor sufocante, as mulas escanzeladas aparelhadas às carroças modelo Hoover sacudiam as moscas à
sombra dos carvalhos existentes na praça. Pelas nove da manhã já os colarinhos bem
engomados dos homens perdiam a goma. As senhoras tomavam banho antes do
meio-dia, depois da sesta das três e ao anoitecer eram como biscoitos de
manteiga cobertos com gotículas de suor e pó de talco perfumado. Naqueles
tempos as pessoas deslocavam-se lentamente. Deambulavam pela praça, ora
entrando, ora saindo das lojas à sua volta, ocupando o tempo com quase tudo. O
dia tinha vinte e quatro horas, mas parecia ser bem mais longo. Não havia
pressa, porque não havia nenhum sítio
para onde ir, nada para comprar e nenhum dinheiro com que comprar, nada para
ver além dos limites de Maycomb County. Mas, para alguns, eram tempos de vago
optimismo: isto porque alguém dissera recentemente que Maycomb County nada tinha
a temer, excepto o próprio medo.
Vivíamos na principal rua residencial da cidade: o Atticus, o Jem
e eu, mais a Calpurnia, a nossa cozinheira. Eu e o Jem achávamos o nosso pai
razoável: ele brincava connosco, lia para nós e tratava-nos com um
distanciamento cortês. Pelo contrário, a Calpurnia já era uma outra história.
Era toda ângulos e ossos; era míope; estrábica; a sua mão era grande como uma
trave e duas vezes mais dura. Estava constantemente a mandar-me sair da cozinha, a perguntar-me por que é que
não me comportava tão bem como o Jem, quando ela sabia perfeitamente que ele
era o mais velho e, além disso, tinha sempre a mania de me chamar para casa nas
piores alturas. As nossas guerras eram épicas e unilaterais. Ela vencia sempre,
muito porque o Atticus tomava sempre o seu partido. Estava connosco desde que o
Jem tinha nascido e eu sentia a
despótica presença dela desde que me lembrava de mim. Eu tinha dois anos quando
a nossa mãe morreu, por isso nunca senti a sua ausência. Era uma Graham de
Montgomery. O Atticus conheceu-a quando foi eleito pela primeira vez para a
comissão legislativa do estado. Ele era já um homem de meia-idade, enquanto ela
era quinze anos mais nova. Jem era o fruto do seu primeiro ano de casamento;
quatro anos mais tarde nasci eu e dois anos depois a nossa mãe morreu de um
súbito ataque cardíaco. Disseram que era hereditário. Não senti a falta dela,
mas penso que o Jem sentiu, e bastante. Ele lembrava-se perfeitamente dela e às
vezes, a meio de um jogo, começava aos suspiros e, em seguida, saía e ia jogar
sozinho para trás da garagem. Mal ele começava assim, eu já sabia que não o
devia importunar.
Quando eu tinha quase seis anos e o Jem para aí uns dez, as fronteiras
do nosso Verão (mas sempre ao alcance do chamamento da Calpurnia) limitavam-se
à casa de Henry Dubose, duas portas a norte, e à Casa Radley, três portas a
sul. Nunca nos tínhamos atrevido a ultrapassá-las. A Casa Radley era habitada
por uma entidade desconhecida cuja descrição era suficiente para nos fazer
andar bem comportados dias a fio; quanto a Dubose, ela era um verdadeiro
inferno. Foi nesse Verão que conhecemos o Dill. Certa (manhã, bem cedinho,
quando estávamos a começar as nossas brincadeiras no pátio das traseiras, eu e
o Jem ouvimos alguma coisa na horta de Rachel Haverford. Dirigimo-nos à cerca
de arame para ver se do outro lado já havia algum cachorrito (a terrier rateira
de Rachel estava prenhe), mas em vez disso encontrámos uma pessoa sentada a
olhar para nós. Sentado, ele não seria muito maior do que as couves. Ficámos a
olhar para ele até que ele disse: Olá! Olá pá ti tam’em - disse o Jem
educadamente. Chamo-me Charles Harris, disse ele. E sei ler. Sim, e depois?, retorquiu o Jem. Pensei
que gostassem de saber que sei ler. Se quiserem qu’eu leia qualquer coisa, é só
dizer...» In Harper Lee, To Kill a Mockingbird, Por Favor, não Matem a Cotovia, edição/reimpressão
1986, Publicações Europa-América, livros de bolso, ISBN 978-972-101-550-0.
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