domingo, 1 de março de 2015

Erec e Enide. Manuel V. Montalbán. «O que nos importa a nós, catedráticos de Literatura Medieval, o uso contingente que cada apresentação lida faça desses mitos? O mais jovem cavaleiro da Távola Redonda enamora-se e casa-se com Enide…»

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«[…] Camelot e os cavaleiros da Távola Redonda conseguiram meter-se na indústria cultural do século XX e provavelmente do século XXI como mitos intrusos que evocam e representam, portanto, a relativa ausência de um vencido que deve a sua sobrevivência a essa ausência, sem a suficiente história para ser codificado e com a suficiente magia para se colar às portas traseiras da memória literária. Mas Artur, obstinadamente, promete voltar, assim como o rei Sebastião ou Emiliano Zapata ou o general MacArthur, para terminar a obra que deixaram por concluir. As mitologias são só relativamente interactivas, são antes classistas e sobretudo assumem a estratégia da comparação carregada de preconceitos religiosos ou filosóficos, com vontade de hegemonia religiosa ou filosófica. E essa vontade de hegemonia, implícita ou explícita, a que desencadeia o processo comparativo, mas é difícil conservar esses preconceitos quando comparamos mitologias desproporcionadas e sucessivas. É o caso da grega e da arturiana não puramente céltica, mas sim passada pela grega. Se o rei Artur é filho de Alexandre Magno, tal como o apuraram Ralf, Hefer e Olshki, de quem o são Erec ou Enide? As suas origens estão nos mitos celtas, entroncados com a família dos amantes hercúleos que devem vencer mil dificuldades por causa do seu amor, como Tristão e Isolda na sua manifestação mais obstinada. Erec e Enide foram referentes cambiáveis segundo os gostos interpretativos de diferentes épocas, mas normalmente passam da leitura normativa de protagonistas que posam para expressar o amor cortês ou como aprendizes de uma nova forma de amar e neste sentido são mitos abertos ao metabolismo de todos os tempos. Quando eu era um estudante sob a autoridade do doutor Martín de Riquer no final dos anos 40, começo dos anos 50 do século XX, predominava a interpretação épica das façanhas de Erec para defender a sua amada; mas quando eu era professor auxiliar de Riquer, dez anos mais tarde, a influência do cinema de Antonioni, concretamente ou o restabelecimento da ética do casal, fazia com que os estudantes se apropriassem da história como fábula da insegurança do amor que deve reconstruir-se todos os dias. Entre o ler Erec e Enide como um manual de épica amatória ou lê-lo como uma angustiada manifestação da crise do casal medeia muita razão e muita sem-razão, ainda que por vezes devessemos abandonar a nossa ambição de especialistas determinadores de verdades cada vez menos questionáveis ou mutáveis, porque as verdades movem-se, crescem, decrescem, e, por vezes, inclusive, desaparecem. Deveríamos compreender e apoiar a leitura secular e a propriedade geral dos mitos, ou seja, a socialização dos mitos, e desculpem o uso da expressão tão pouco académica, e também socialmente tão referida. Erich Kohler sustenta em A Aventura Cavalheiresca que as lendas encobrem histórias reais e que chega um momento em que não se distinguem lenda e história real, pelo que deduzo eu, quando entram na história da literatura não nos interessa fazer muito esforço em saber a extensão da verdade histórica que há num mito, numa lenda resolvida literariamente. Podemos fixar-nos metas eruditas mas sabemos que a literatura depende do leitor e que cada leitor descodifica o que lê à margem das nossas instruções tanto mais intransferíveis quanto a proposta literária mais se afasta do contemporâneo. Nós necessitamos de saber específico para ler apaixonadamente Erec e Enide, mas os leitores contemporâneos, se os houvesse, de uma versão de leitura convencional, fariam a sua própria escolha de significantes em função de cada substrato pessoal, da informação cultural incluída...[…]
Onde é que vais parar, Júlio, questionar-se-ão, neste momento da leitura, todos, mas sobretudo Myrna, e olhar-me-á da sua cadeira com olhos divertidos? Uma abjuração do erudito? Então, para que é que servimos se não for para descobrir, um dia, de que mito era filho Erec ou Enide? O que nos importa a nós, catedráticos de Literatura Medieval, o uso contingente que cada apresentação lida faça desses mitos? O mais jovem cavaleiro da Távola Redonda enamora-se e casa-se com Enide para iniciar então uma retirada vida amorosa muito criticada pelos outros cavaleiros, infradotados para compreender que Erec prefira o amor à guerra. E é então, quando conhecedor dessas críticas, que Erec prepara uma aventura sem limites: Enide seguirá à sua frente, sozinha, exposta aos perigos do mundo e quando surjam as ameaças, Erec sairá em sua defesa, para a recuperar em cada lance». In Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN 972-29-0651-8.

Cortesia de Difel/JDACT