terça-feira, 3 de março de 2015

Uma Viúva Apaixonada. Luz e Sombra no Oriente. Um Péssimo Galã. D. João III. Mário Domingues. «A viúva dona Leonor foi-lhe no encalço. Apenas para fugir ao flagelo? Não. Toda a gente sabia que ela só desejava achar-se perto do enteado. E as visitas deste tornaram-se mais notórias e descaradas»

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Uma Viúva Apaixonada
«(…) Morto este, porém o obstáculo à felicidade dos dois apaixonados desaparecera. O bonito romance que se arquitectara em volta de um possível idílio podia ter o auspicioso e lógico epílogo: o casamento. Ninguém duvidava de que tudo se encaminhava nesse sentido. E da atitude de dona Leonor se depreende que o seu maior desejo, seria realmente transformar o enteado em marido. A assiduidade do novo rei junto dela era tão notória que até o povo, representado pelo município de Lisboa, julgando ir ao encontro do que os enamorados mais apeteciam, pois já ninguém punha en dúvida a existência de ilícitas relações amorosas entre eles, dirigiu uma nensagern a cada um, rogando-lhes que se unissem pelos laços do matrimónio.
Esse enlace serviria simultaneamente todos os interesses em jogo: primeiro, o dos namorados, que acabavam com uma situação desairosa e veriam satisfeitas as suas mais ardentes aspirações; segundo, os do Tesouro, que já não teria de devolver a dona Leonor o dote, caso ela regressasse a Castela, como seu irmão Carlos V desejava; e, por fim, os dos contendores portugueses e castelhanos, que ainda não tinham chegado a acordo acerca do destino da infanta dona Maria, última filha de Manuel I, menina ainda de colo, que Portugal exigia que ficasse no reino e Castela reclamava com a devolução da mãe.
Tanto João III como sua madrasta responderam com evasivas à mensagem popular. Supôs-se que não acediam imediatamente, para simularem surpresa ante uma sugestão imprevista, por uma questão de pudor, de recato, salvando as aparências. E seria realmente assim por parte de dona Leonor. Queria fingir que não admitia sequer a hipótese de que já houvesse relações pecaminosas entre ela e o enteado, um homem que legalmente se encontrava no lugar de seu filho. As evasivas de João III, porém, exprimiam o verdadeiro estado do seu espírito. É que, talvez depois de saciado o interesse do adolescente pela mulher apetecida, já não experimentasse grande empenho em recebê-la como esposa.
O que o animava ainda era o orgulhoso capricho de contrariar o imperador Carlos V, que tinha interesse em readmitir de novo a irmã na sua corte, onde voltaria a ser um valor negociável, pois queria obter a paz com a França em troca dela, oferecendo-a em casamento a Francisco I daquele reino. Seria urn elemento de conciliação e um trunfo inestimável da sua estratégia política para o domínio da Europa. Dona Lecnor, porém, não se mostrava nada interessada em solucionar com o sacrifício do seu amor os problemas do irmão.
Os boatos daqueles amores teriam chegado aos ouvidos de Carlos V e o seu remate num enlace contrariava-lhe os planos. Por isso, nomeara Cristóvão Barroso seu embaixador em Portugal, corn a missão específica de vigiar os actos da viúva que ele queria oferecer em segundas núpcias ao rei de França. Por sinal, este fiel servidor castelhano caractetizou-se pela arrogância e pelo excesso de zelo, imperdoáveis num diplomata. Mais parecia um cão de guarda do que um embaixador. Sucedeu que, lavrando a peste em Lisboa, calamidade que à força de frequente já não causava estranheza a ninguém, resolveu a corte transferir-se para a margem sul (não será margem esquerda?, JDACT) do Tejo. A viúva dona Leonor foi-lhe no encalço. Apenas para fugir ao flagelo? Não. Toda a gente sabia que ela só desejava achar-se perto do enteado. E as visitas deste tornaram-se mais notórias e descaradas. Entretanto, Carlos V e João III discutiam diplornaticamente o destino a dar à infanta dona Maria, última filha de Manuel I e de dona Leonor. Não queria esta separar-se da menina, o que lhe serviria de óptimo pretexto para ficar em Portugal junto do homem amado. Contudo, acerca da sugestão de casar-se com o monarca, declarava comedidamente não poder tomar qualquer resolução sem que seu irmão Carlos V se pronunciasse. E o tempo ia correndo e as visitas do enteado continuavam». In Mário Domingues, D. João III, o Homem e a Sua Época, Evocação Histórica, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1962.

Cortesia de RTorres/JDACT