quinta-feira, 23 de abril de 2015

A Condessa Cercada. Isabel. Pedro Torres. «No início do século XVI, a expansão portuguesa avança sobre as praças mouras do norte de África, conquistando importantes posições do inimigo. Arzila, grandiosa praça costeira, recebe um novo capitão, o conde de Redondo…»

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«Depois da ultima campanha o castelo era um outro, estranho e frio. De adivinhas, as pedras fizeram-se ásperas e zombeteiras, e sempre que a noite caía, o negrume da culpa descia pelas paredes do salão, tal como as manchas de humidade, grotescas naquele Inverno. Sentia-se como um estrangeiro na casa onde vivera os últimos vinte e três anos. Não mais reconhecia o ranger do soalho de madeira, a labareda mortiça das velas, o ar salgado das ondas do mar ou o fogo da lareira, agora tão ténue e amodorrado. E no entanto, tudo era tão igual. Confuso e angustiado, o conde percorria o grande salão em círculos com as mãos atrás das costas, movendo a cabeça com gestos bruscos e arregalando os olhos em todas as direcções, procurando respostas naquela que fora a sua sala de jantar e onde reunira com os seus comandantes militares, onde tudo era tão familiar e repleto de boas recordações, desaparecidas assim que o Sol se punha. Por momentos deu de caras com um grande escudo fixo na pedra, e com a sua imagem reflectida na superfície côncava e polida do metal, o rosto, já de si magro e ossudo, ainda mais se sumia na distorção que o traiçoeiro espelho provocava. Encovava-lhe os olhos, afundava as órbitas, abria as bexigas da pele e animava as manchas escuras de antigos ferimentos coagulados, abertos a golpes de espada ou por explosões de pólvora dos tiros de espingarda. Que aspecto desgraçado, Vasco!, suspirou tristemente. Enquanto o maxilar inferior pendia mecanicamente e repuxava os lábios gretados e lívidos, a sua mão tentava alisar os longos cabelos brancos, também eles desgrenhados e de aspecto baço, movendo a cabeça ligeiramente ora para a esquerda ora para a direita, buscando no escudo uma perspectiva mais favorável à sua imagem. Mas era inútil. Qualquer que fosse o ângulo, qual manto pesado, roto e bolorento, a velhice cobria-o por completo. Já não pertencia mais ali. Soubera-o de imediato, no momento em que descera da caravela e pisara a areia da praia, estranhamente calada naquele dia. O povo estava lá todo, aguardando, apinhado ao longo do areal, prostrado do alto das muralhas, sentado nos rochedos castanhos e lustrosos que a maré baixa trazia. Mas tão silencioso que até o rumor tranquilo do estertor das ondas lhes sobrepunha. E quando o povo cerrava os dentes, era sinal de que havia notícias da morte pela vila.
O  que mais o consumia por dentro, mesmo passado um mês sobre o regresso, era o seu atraso sobre a malfadada notícia que, viajando por terra pela mão de mercadores judeus, havia chegado antes que a armada tivesse tempo de desembarcar. Enquanto a bordo das caravelas ecoavam os risos e palavras de alegria pelo sucesso de uma campanha vitoriosa em pleno coração do território mouro, animados pela brisa fresca e sadia que agitava os estandartes no topo dos mastros e se envolvia na curvatura do pano-cru da vela latina, os sinos da torre da igreja de São Bartolomeu tocavam a rebate, e toda a vila de Arzila vinha ao largo, que a desgraça era grande. Enquanto uma parte enorme de si ruía e se afundava sob os seus pés, o conde Vasco apenas celebrava e ria, nada sabendo. E era essa ignorância, ainda que inevitável e sem culpas, o que o atormentava como uma ferida interna, dolorosa e persistente. O luto antecipado, que não esperara o regresso do seu capitão, era o motivo pelo qual o castelo já não era o mesmo, nem a vila, nem as muralhas ou o fosso em seu redor. Nada tinha já, aos seus olhos tristes, a mesma força e robustez e pujança de outros tempos. Arzila, a imponente praça portuguesa cravada no Algarve Dalém repleto de perigos, conquistada aos mouros à força corajosa dos antepassados e defendida de inúmeras corridas e cercos com a vontade obstinada dos seus habitantes e a de Deus, fugia-lhe do seu comando e recebia-o apenas como um visitante, cuja derradeira partida estava para breve. O seu povo e seu exército continuavam a admirá-lo e respeitá-lo, por toda a forma engenhosa com que havia governado a praça africana. Os mouros superavam os seus por três e quatro vezes em número, mas o velho conde era, muito mais que um estratega militar, um político e um diplomata de grande experiência. A sua gente ainda lhe reconhecia todas as capacidades, e não havia alma que não desejasse que ali permanecesse até ao fim dos seus dias. Mas as teimosas pedras tinham uma força e persistência muito superiores, e essas já não mais o queriam, acreditava, encostado a uma coluna, depois de furtar ao escudo ilusório. Sim, porque voltaste, Vasco? Porque não ficaste mais uma semana entre os homens no terreno, porque deste como concluída a tua parte quando sempre soubeste que depois das conquistas era fundamental prestar guarda redobrada, reforçar as posições e assegurar que o inimigo, reorganizado, não poderia causar mais dano e provocar uma reviravolta surpresa? Como podias ter embarcado e ignorar o perigo daqueles dias quando ainda o sangue vertido exalava o seu odor morno, sabendo que entre aqueles a quem era entregue a missão de assegurar o rechaço de novos ataques estava o teu filho infante? Como pudeste ser um pai tão negligente, Vasco? Como podias falhar de forma tão grosseira? In Pedro L. Torres, Isabel, A Condessa Cercada, Saída de Emergência, 2014, ISBN 978-989-637-660-4.

Cortesia de SEmergência/JDACT