«Depois
da ultima campanha o castelo era um outro, estranho e frio. De adivinhas, as
pedras fizeram-se ásperas e zombeteiras, e sempre que a noite caía, o negrume
da culpa descia pelas paredes do salão, tal como as manchas de humidade,
grotescas naquele Inverno. Sentia-se como um estrangeiro na casa onde vivera os
últimos vinte e três anos. Não mais reconhecia o ranger do soalho de madeira, a
labareda mortiça das velas, o ar salgado das ondas do mar ou o fogo da lareira,
agora tão ténue e amodorrado. E no entanto, tudo era tão igual. Confuso e
angustiado, o conde percorria o grande salão em círculos com as mãos atrás das
costas, movendo a cabeça com gestos bruscos e arregalando os olhos em todas as direcções,
procurando respostas naquela que fora a sua sala de jantar e onde reunira com
os seus comandantes militares, onde tudo era tão familiar e repleto de boas
recordações, desaparecidas assim que o Sol se punha. Por momentos deu de caras com
um grande escudo fixo na pedra, e com a sua imagem reflectida na superfície
côncava e polida do metal, o rosto, já de si magro e ossudo, ainda mais se
sumia na distorção que o traiçoeiro espelho provocava. Encovava-lhe os olhos,
afundava as órbitas, abria as bexigas da pele e animava as manchas escuras de
antigos ferimentos coagulados, abertos a golpes de espada ou por explosões de
pólvora dos tiros de espingarda. Que aspecto desgraçado, Vasco!, suspirou
tristemente. Enquanto o maxilar inferior pendia mecanicamente e repuxava os
lábios gretados e lívidos, a sua mão tentava alisar os longos cabelos brancos,
também eles desgrenhados e de aspecto baço, movendo a cabeça ligeiramente ora
para a esquerda ora para a direita, buscando no escudo uma perspectiva mais favorável
à sua imagem. Mas era inútil. Qualquer que fosse o ângulo, qual manto pesado,
roto e bolorento, a velhice cobria-o por completo. Já não pertencia mais ali.
Soubera-o de imediato, no momento em que descera da caravela e pisara a areia
da praia, estranhamente calada naquele dia. O povo estava lá todo, aguardando,
apinhado ao longo do areal, prostrado do alto das muralhas, sentado nos
rochedos castanhos e lustrosos que a maré baixa trazia. Mas tão silencioso que
até o rumor tranquilo do estertor das ondas lhes sobrepunha. E quando o povo
cerrava os dentes, era sinal de que havia notícias da morte pela vila.
O que mais o consumia por dentro, mesmo passado
um mês sobre o regresso, era o seu atraso sobre a malfadada notícia que,
viajando por terra pela mão de mercadores judeus, havia chegado antes que a
armada tivesse tempo de desembarcar. Enquanto a bordo das caravelas ecoavam os
risos e palavras de alegria pelo sucesso de uma campanha vitoriosa em pleno
coração do território mouro, animados pela brisa fresca e sadia que agitava os
estandartes no topo dos mastros e se envolvia na curvatura do pano-cru da vela
latina, os sinos da torre da igreja de São Bartolomeu tocavam a rebate, e toda
a vila de Arzila vinha ao largo, que a desgraça era grande. Enquanto uma parte
enorme de si ruía e se afundava sob os seus pés, o conde Vasco apenas celebrava
e ria, nada sabendo. E era essa ignorância, ainda que inevitável e sem culpas,
o que o atormentava como uma ferida interna, dolorosa e persistente. O luto
antecipado, que não esperara o regresso do seu capitão, era o motivo pelo qual
o castelo já não era o mesmo, nem a vila, nem as muralhas ou o fosso em seu
redor. Nada tinha já, aos seus olhos tristes, a mesma força e robustez e
pujança de outros tempos. Arzila, a imponente praça portuguesa cravada no
Algarve Dalém repleto de perigos, conquistada aos mouros à força corajosa dos
antepassados e defendida de inúmeras corridas e cercos com a vontade obstinada
dos seus habitantes e a de Deus, fugia-lhe do seu comando e recebia-o apenas
como um visitante, cuja derradeira partida estava para breve. O seu povo e seu exército
continuavam a admirá-lo e respeitá-lo, por toda a forma engenhosa com que havia
governado a praça africana. Os mouros superavam os seus por três e quatro vezes
em número, mas o velho conde era, muito mais que um estratega militar, um
político e um diplomata de grande experiência. A sua gente ainda lhe reconhecia
todas as capacidades, e não havia alma que não desejasse que ali permanecesse
até ao fim dos seus dias. Mas as teimosas pedras tinham uma força e
persistência muito superiores, e essas já não mais o queriam, acreditava,
encostado a uma coluna, depois de furtar ao escudo ilusório. Sim, porque voltaste, Vasco? Porque
não ficaste mais uma semana entre os homens no terreno, porque deste como
concluída a tua parte quando sempre soubeste que depois das conquistas era
fundamental prestar guarda redobrada, reforçar as posições e assegurar que o
inimigo, reorganizado, não poderia causar mais dano e provocar uma reviravolta
surpresa? Como podias ter embarcado e ignorar o perigo daqueles dias quando
ainda o sangue vertido exalava o seu odor morno, sabendo que entre aqueles a
quem era entregue a missão de assegurar o rechaço de novos ataques estava o teu filho infante? Como pudeste ser um pai tão negligente, Vasco? Como podias falhar de forma tão grosseira?
In
Pedro L. Torres, Isabel, A Condessa Cercada, Saída de Emergência, 2014, ISBN
978-989-637-660-4.
Cortesia
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