Cherbourg, França. 10 de Abril
de 1912
«Tess puxou os cantos dos lençóis que acabara de recolher do estendal,
tentou enfiá-los por baixo do colchão bem esticados e recuou para verificar o seu
trabalho. Ainda meio malfeito e amarfanhado. O supervisor que administrava a
casa com certeza inspecionaria aquilo e torceria o nariz, mas isso já não
importava mais. Ela olhou pela janela. Uma mulher passava por ali, usando um
chapéu esplêndido encimado por uma fita verde-escura brilhante e girando uma
sombrinha vermelha, com uma expressão radiante e determinada. Tess tentou se
imaginar andando assim com tanta confiança, sem ninguém para acusá-la de agir
como se pertencesse a uma classe superior à sua. Quase podia sentir os seus
dedos em redor do cabo macio e polido daquele guarda-chuva. Aonde estaria indo
aquela mulher? Olhou para trás, para a cama feita pela metade. Chega de
fantasias, nem mais um minuto. Caminhou para fora do quarto e parou, contida
pela visão do próprio reflexo no espelho dourado de corpo inteiro do final ao
corredor. Os seus longos cabelos escuros, como sempre, tinham escapado do desalinhado,
embora a curvatura de seu queixo, que normalmente lhe conferia um ar de
arrogância, continuasse intocada. Mas não havia como negar o vergonhoso ponto
crucial: o que ela viu foi uma jovem magricela com um vestido preto e um
avental branco, carregando uma pilha de roupa suja e que usava um chapéu idiota
de servente bem no alto da cabeça. Uma imagem de servidão. Arrancou o chapéu e
atirou-o em direcção ao vidro. Ela não era servente nenhuma. Era uma
costureira, e das boas, e seria paga pelo seu trabalho. Tinha-se equivocado ao
aceitar aquele emprego. Tess enfiou as
roupas sujas pelo alçapão da lavandaria e subiu a escada para o seu quarto no
terceiro andar, desamarrando o avental pelo caminho. É agora. Chega de
hesitação. Havia empregos disponíveis, disseram os estivadores, naquele navio
gigantesco que estava zarpando para Nova Iorque. Ela correu os olhos pelo
quartinho. Nada de malas: a patroa não a deixaria chegar à porta caso soubesse
que ela estava indo embora. O retrato da sua mãe, sim. O dinheiro. Seu
portfólio, com todas as suas criações. Tirou o uniforme, colocou o seu melhor
vestido e enfiou algumas roupas de baixo, meias e o seu único outro vestido num
saco de lona. Olhou para o vestido de baile inacabado que estava na máquina de
costura, para os minúsculos lacinhos de veludo branco que ela havia prendido à
mão com tanto esforço na seda azul enfunada. Outra pessoa teria de terminá-lo,
alguém que fosse pago para isso. O que mais? Nada. Respirou fundo, tentando
resistir ao eco da voz do seu pai na sua cabeça: Não seja metida, repreendia ele. Tu és uma garota do campo, faz o teu trabalho, mantém sempre a cabeça
baixa. Recebe ordenado decente e suficiente; melhor não arruinar a vida com
tanta ousadia. Não vou arruinar a minha vida, sussurrou. Vou transformá-la
para melhor. Enquanto saía do seu quarto pela última vez, ela quase podia ouvir
a voz dele acompanhando-a, rouca e raivosa como sempre: Cuidado, garota boba. As botas de salto de Lucile prendiam nas
tábuas de madeira apodrecidas sob os seus pés enquanto ela abria caminho pela
multidão no porto de Cherbourg. Ajeitou a estola de pele de raposa em redor do
pescoço, deliciando-se com a maciez felpuda do pelo espesso, e empertigou a
cabeça, atraindo muitos olhares, alguns motivados pela visão de seus cabelos
ruivos de tom vivo, outros por saberem quem ela era. Olhou para a irmã, que
andava rapidamente na sua direcção, cantarolando alguma canção nova e girando
uma sombrinha vermelha. Tu gostas mesmo de bancar a jovial, não é?, disse. Tento
de ser uma pessoa agradável, murmurou a irmã. Não preciso competir. Tu podes
ficar com todas as atenções, disse Lucile com o seu tom mais áspero e altivo. Ah,
para com isso, Lucy. Nenhuma de nós é deficiente nesse quesito. Tu andas
rabugenta ultimamente. Se fosses apresentar uma colecção de Primavera em Nova
Iorque dentro de poucas semanas, também estaria rabugenta. Tenho muito com que
me preocupar com toda essa conversa de mulheres suspendendo as saias e
achatando os seios. Tu, por outro lado, só precisas de escrever mais um romance
sobre elas. As duas começaram o ziguezague entre as dúzias de malas e baús,
cujas dobradiças de metal cintilavam à luz que caía, enquanto as suas saias de
lã fina arrastavam camadas de poeira húmida. É verdade, as ferramentas da minha
profissão são muito mais portáteis do que as tuas, disse Elinor, distraída. Com
certeza que são. Sou obrigada a fazer esta travessia porque não tenho ninguém
competente o bastante para cuidar do desfile, portanto eu mesma terei de estar
presente. Então, por favor, não sejas frívola. Elinor fechou a sombrinha com um
estalo e encarou a irmã, arqueando uma de suas sobrancelhas perfeitas. Lucy, tu
és incapaz de ter senso de humor? Só vim aqui para te desejar bon voyage e
acenar quando o navio partir. Devo ir embora agora? Lucile suspirou e tomou
fôlego, inspirando profundamente. Não, por favor, disse ela. Gostaria tanto que
viesses comigo. Vou sentir a tua falta. Adoraria ir, mas o meu editor quer
aquelas provas de impressão revistas até o fim desta semana. A voz de Elinor
tornou-se radiante mais uma vez. Mas tu tens o Cosmo, que é um doce, embora ele
não goste de poesia. Um defeito mínimo. Ele é um querido, o melhor presente que
te deu foi um livro. Fui grosseira? Mas a verdade é que ele não tem nenhum
gosto literário. Elinor suspirou. E sabe como ser aborrecido. Tolice. Tu sabes
disso tão bem quanto eu. Onde ele está? Lucile corria os olhos pela multidão,
procurando a silhueta alta e angulosa de Sir Cosmo Duff Gordon. Esse
atraso é de enlouquecer. Se tem alguém que consegue fazer as coisas funcionarem
com eficiência, e na hora, é Cosmo. Claro. É o trabalho dele. Lucile lançou um
olhar furioso para Elinor, mas a irmã já estava olhando para outra direcção,
com uma expressão inocente.
No alto da encosta, longe do ancoradouro, no
meio das casas de
tijolo que se espalhavam nos penhascos da costa da Normandia, Tess descia a escada
até à sala de estar. À sua espera estava a patroa, uma inglesa empertigada com
lábios tão finos que pareciam ter sido costurados. Quero o meu pagamento, por favor,
disse Tess, escondendo o saco de lona nas dobras da sua saia. Ela viu o
envelope que aguardava por ela na mesinha de canto perto da porta e começou a
se inclinar naquela direcção. Ainda não terminou o vestido para a festa, Tess, disse a mulher num tom
mais autoritário que o normal. O meu filho mal conseguiu encontrar uma toalha no armário do
corredor hoje de manhã. Agora ele irá encontra-lo. Ela não voltaria lá em cima. Nunca
mais se deixaria encurralar naquele armário de roupas de cama, mesa e banho,
desvencilhando-se dos dedos magros e ansiosos do filho adolescente dela. Aquele
envelope era seu; ela pôde ver o seu nome
escrito nele, e não estava disposta a ficar ali ouvindo as reclamações
costumeiras antes de ele lhe ser entregue. Aproximou-se da mesa. Já disse isso antes. Vou lá em cima agora mesmo para testar. A mulher parou quando viu a garota estendendo a mão para
apanhar o envelope. Tess, eu ainda não o entreguei! Talvez não, mas eu já fiz por merecê-lo, disse Tess com cuidado. A má-criação não é nada admirável,
Tess. Tem andado muito misteriosa ultimamente.
Se apanhar isso antes de lho entregar, terá
ultrapassado os limites comigo. Tess respirou fundo e, sentindo-se ligeiramente
tonta, apanhou o envelope e segurou-o contra o corpo, como se ele pudesse ser
arrancado de suas mãos. Então já ultrapassei, disse ela. Sem esperar
resposta, abriu a porta de entrada, ricamente ornada, que ela jamais teria de
polir de novo e rumou para a saída. Depois de tanto sonho e reflexão, tinha
chegado a hora». In Kate Alcott, A Costureira, Geração Editora, tradução de Ana
Mesquita, 2012/2013, ISBN 978-858-130-131-0.
Cortesia de Geração E./JDACT