1805
- 1806
«João
Albuquerque, barão de Arraiais, apoiou a mão da sua única filha conforme esta
subia para a berlinda. Manteve os olhos baixos para evitar que ela vislumbrasse
a tristeza do adeus no seu olhar. Trazia um lenço no bolso do colete, sujo da
sua doença do peito. Sabia que não teria disponível o tempo de que necessitava,
e não estava disposto a sacrificar a segurança da mulher nem a de Mariana. Sendo
dono e senhor de uma extensa companhia de extracção e transporte de madeiras,
estava profundamente dependente do negócio com o Oriente. Era daí que vinham
contadores e baús indo-portugueses, importados para utilização da nobreza e
realeza, para fins de decoração nas suas residências com madeiras exóticas e
madrepérola. Ele conseguia concebê-los na sua fábrica de São Domingos a partir das
madeiras que importava, em modelos semelhantes aos orientais. Como barão de uma
pequena extensão de terra nos socalcos do Douro, pois que um dos seus antepassados
fora um dia de valia a João V, não era suposto ter de passar as suas horas
metido numa pequena casinha na alfândega, junto ao Tejo, de onde controlava a
chegada e a partida de mercadorias. No entanto, e devido à má gestão do seu
bisavô, que provavelmente se achara tão enriquecido pela exploração de ouro no
Brasil quanto a própria Majestade
Fidelíssima, gravitando ao seu redor na corte, vira-se obrigado a
investir os parcos meios da família em algo que lhes permitisse viver com
dignidade. E acabara por descobrir que, por muito desonroso que fosse para um
nobre trabalhar, tinha talento para os negócios e que os números eram o seu
dom. Enriquecera pecaminosamente com o negócio a que se dedicara. Desse modo, o
colo de Mariana nunca fora obrigado a cruzar a rua sob o sol do meridiano e
dona Sofia nunca tivera precisão de criados nem de jóias. Era bem guarnecida de
ambos, ainda que isso não a trouxesse menos amarga. O olhar escuro como ébano
de Mariana dirigiu-se-lhe, levemente angustiado. Procurou o dele, exigiu que se
prendessem um no outro por um breve momento. Talvez, perspicaz como era,
suspeitasse que aquela poderia ser a última vez que veria o pai. João Albuquerque
estava certo de que assim era; a sua saúde deteriorava-se a olhos vistos, a
tísica era contagiosa e, ao entardecer, era geralmente tomado por febres que o
enfraqueciam. As noites arrastavam-se com uma tosse aflitiva que mantinha a
mulher igualmente acordada, e era olhado de lado pelos homens que, como ele, dividiam
o espaço na sua salinha na alfândega. Tinha, contudo, sido demasiado apreciado
pela rainha, para que se opusessem à sua presença junto aos seus cadernos de
números. Era um homem tido em certa conta e, se não fosse a doença que havia
meses lhe corroía os pulmões, teria um aspecto ainda jovem para os seus trinta
e quatro anos. Ultimamente, parecia que a pele adquirira um tom macilento e que
a cavidade toráxica se tornava mais evidente. Emagrecia no esforço por trazer
algum ar ao seu interior. A peste cinzenta reclamava-o para o outro lado e ele,
como bom cristão, assegurara-se de que encaminhava as duas almas que tinha a
seu encargo para a costa.
Dona
Sofia, de trinta e três anos, dedicou um último olhar ao patamar que antevia as
escadas para a casa onde circulara nos últimos vinte anos. Teria saudades dos
candelabros a iluminar-lhe os corredores à noite, bem como da tapeçaria de
Aubusson que tanto se esforçara por adquirir, e que ilustrava episódios das
famosas Fábulas de La Fontaine,
e da cozinha com os recipientes de cobre pendurados nas paredes caiadas. A construção
era recente, pós-terramoto, munida da melhor mobília adquirível em Portugal.
Não fosse o seu marido também chefe de quinze artesãos que a trabalhavam ao
gosto oriental, como estava em voga. A residência situava-se logo ali, na nova
baixa de Lisboa, paredes-meias com a Igreja de São Nicolau. Ainda não tinham
cedido ao capricho de adquirir uma propriedade mais opulenta para os lados da Ajuda,
e agora que podiam facilmente fazê-lo, a família era desmantelada. Dona Sofia
contorcia-se interiormente de revolta ante aquela última disposição do marido.
Deixara claro que ganharia sempre qualquer discussão, mas ela não se conformava
em abandonar o conforto da sua casa. Também Mariana tinha dificuldade em
compreender o porquê daquela decisão do pai, mas ele garantira-lhe que, quando
tivesse filhos, seria capaz de descobrir a resposta por si só. Sentiria
saudades da vida na cidade onde sempre vivera; do Teatro Italiano,
apelidado de São Carlos a pedido da princesa Carlota Joaquina de Bourbon,
com o qual só fora autorizada a sonhar, do Rossio, com a sua azáfama de
comerciantes e as suas mercadorias de cheiros característicos, da frente
ribeirinha, onde se apinhavam varinas, e de toda a restante panóplia de gente
que povoava as ruas de Lisboa, e ainda do passeio de caleche até Belém ao
domingo de manhã, quando os abastados do bairro assistiam à missa nos
Jerónimos. Nessas ocasiões, ela estendia as pernas no discreto areal
acompanhada da sua mestra, a jovem Maria, que era também dama de companhia, das
não muito faladeiras». In Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão,
1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT