«(…)
Filipe V, o Longo um homem só,
avançado em relação ao seu tempo, foi vítima de uma incompreensão geral. Deixou
apenas filhas; a lei dos varões, que
ele próprio promulgara em seu benefício, excluiu-as do trono. A coroa passou
para o seu irmão mais novo, Cados de La Marche, tão medíocre de inteligência
como belo de rosto. O poderoso conde de Valois, o conde Roberto de Artois, a
primalhada dos Capetos e a reacção dos barões eram de novo vitoriosas. Finalmente
podiam voltar a falar de cruzada, envolver-se nas intrigas do Sacro Império,
especular com a cunhagem de moedas e assistir, com um sorriso trocista, às
dificuldades que então atravessava o reino de Inglaterra. Nesse país, um rei
frívolo, ardiloso, incapaz, subjugado pela paixão amorosa que dedica ao
favorito, bate-se contra os barões, os bispos, e também ele rega com o sangue
dos súbditos a terra do seu reino. Também aí, uma princesa de França vive como
uma mulher humilhada, uma marioneta, teme pela vida, conspira para se defender
e sonha com a vingança. Poderia pensar-se que Isabel, filha de Filipe, o Belo, e irmã de Carlos IV de França,
levou com ela para o outro lado da Mancha a maldição dos Templários…
Do
Tamisa ao Garona
Um
corvo enorme, negro, luzidio, monstruoso, quase tão grande como um ganso,
saltitava em frente da lucarna. De vez em quando detinha-se, com a asa
descaída, a pálpebra enganadoramente descida sobre o olhinho negro e redondo,
como se se preparasse para dormir. Depois, de repente, estendendo o bico, procurava
debicar os olhos do homem, que brilhavam por trás das barras do pequeno
orifício. Os olhos cinzentos, da cor do sílex, pareciam atrair o pássaro. Mas o
prisioneiro estava vivo e afastava o rosto. Nessa altura o corvo retomava o
passeio, com saltos curtos e desajeitados. O homem estendeu a mão para fora da
lucarna, uma bela mão forte e comprida, nervosa, lenta e insensível, e deixou-a
inerte, como um ramo esquecido sobre o pó dos caminhos, à espera de agarrar o
corvo pelo pescoço. Mas o pássaro também era rápido, apesar do tamanho. Com um
salto, afastou-se a grasnar. Cuidado, Eduardo, cuidado, disse o homem que se
encontrava por trás das barras de ferro. Um dia vou acabar por te estrangular. Isto
porque o prisioneiro dera ao corvo o nome do seu inimigo, o rei de Inglaterra.
O jogo durava já, há dezoito meses, dezoito meses em que o corvo tivera os olhos
do prisioneiro na sua mira, dezoito meses que Rogério Mortimer, oitavo barão de
Wigmore, grande senhor das Marches galesas e ex-lugar-tenente do rei na
Irlanda, estivera encarcerado, juntamente com o tio Rogério Mortimer de Chirk,
antigo grão-juiz do País de Gales, num calabouço da Torre de Londres. Segundo o
costume, os prisioneiros da categoria de Mortimer, que pertencia à mais antiga
nobreza do reino, tinham direito a um alojamento decente. Contudo, quando o rei
Eduardo II mandara prender os dois Mortimer, em Janeiro de 1322, depois da batalha de Shrewsbury, contra os barões revoltados,
atribuíra-lhes aquele calabouço estreito e baixo, com uma pequena lucarna que
dava para o chão do pátio, nos novos edifícios que mandara construir, à direita
do campanário. Obrigado, pela pressão da corte, dos bispos e até do povo, a
transformar em prisão perpétua a pena de morte que começara por proclamar
contra os Mortimer, o rei esperava no entanto que aquela cela malsã, aquele
lugar em que era possível tocar no tecto com a testa, acabaria com o tempo por
se substituir ao carrasco. De facto, se os trinta e seis anos de Rogério
Mortimer de Wigmore haviam resistido a semelhante prisão, pelo contrário, dezoito
meses de humidade a insinuar-se pela pequena lucarna, de água a escorrer das
paredes, de bafio durante a estação do calor, pareciam ter levado a melhor
sobre o senhor de Chirk. Perdera o cabelo e os dentes, tinha as pernas inchadas
e as mãos tolhidas de reumatismo e já quase não saía de cima da prancha de
carvalho que lhe servia de catre. O sobrinho, por seu lado, passava o dia junto
da lucarna, com os olhos voltados para a luz». In Maurice Druon, Os Reis
Malditos, A Loba de França, 1966, tradução de Helena Ramos, Círculo de
Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.
Cortesia
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