As cidades e o nome. X
«(…) Aos tempos de indigência sucediam-se épocas mais alegres:
uma Clarice borboleta sumptuosa nascia da Clarice crisálida miserável; a nova
abundância fazia a cidade transbordar de materiais edifícios objectos novos;
afluía nova gente vinda de fora; já nada nem ninguém tinha alguma coisa a ver
com a Clarice ou as Clarices de antes; e quanto mais a nova cidade se instalava
triunfalmente no lugar e no nome da primeira Clarice, mais se dava conta de se
afastar daquela, de destruí-la não menos rapidamente do que os ratos e o bolor:
apesar do orgulho do novo fausto, no fundo do coração sentia-se estranha,
incongruente, usurpadora. E então os resquícios do primeiro esplendor que se tinham
salvado adaptando-se a necessidades mais obscuras eram novamente deslocados,
guardados sob campânulas de vidro, encenados em vitrinas, colocados em
almofadões de veludo, e já não porque podiam ainda servir para qualquer coisa,
mas porque através deles se desejava recompor uma cidade de que já ninguém
sabia nada. Outras deteriorações e outros vigores se seguiram em Clarice. As
populações e os costumes mudaram muitas vezes mais; restam o nome, a
localização, e os objectos mais difíceis de quebrar. Cada nova Clarice,
compacta como um corpo vivo com os seus odores e a sua respiração, ostenta como
uma jóia o que resta das antigas Clarices fragmentárias e já mortas. Não se
sabe quando estiveram os capitéis coríntios no alto das suas colunas: só se
recorda de um deles que por muitos anos numa capoeira manteve a cesta onde as
galinhas punham os ovos, e dali passou para o Museu dos Capitéis, em fila com
os outros exemplares da colecção. Já se perdeu a ordem da sucessão das várias
eras; que houve uma primeira Clarice é crença bem difundida, mas não há provas
que o demonstrem; os capitéis poderiam ter estado nas capoeiras antes de irem
parar aos templos, as urnas de mármore poderiam ter sido semeadas com manjerico
antes de o serem com ossos de defuntos. De certeza só se sabe uma coisa: um
certo número de objectos desloca-se num certo espaço, ora submerso por uma
quantidade de objectos novos, ora consumando-se sem serem substituídos; a regra
é misturarem-se todas as vezes e experimentar juntá-los de novo. Talvez Clarice
haja sempre sido apenas uma barafunda de bugigangas partidas, mal combinadas,
fora de uso.
As cidades e os mortos. 3.
Não há cidade mais propensa que Eusápia a gozar a vida e a
fugir às ansiedades. E para que o salto da vida para a morte seja menos brusco,
os habitantes construíram debaixo de terra uma cópia idêntica da sua cidade. Os
cadáveres, secos de maneira que fique o esqueleto revestido de pele amarela,
são levados lá para baixo para continuarem as ocupações de antes. Destas, são
os momentos despreocupados que têm a preferência: a maior parte deles,
colocam-nos sentados à volta de mesas postas, ou em posição de dança ou no
gesto de tocar trompas. Mas também todos os comércios e ofícios da Eusápia dos
vivos continuam ao trabalho debaixo de terra, ou pelo menos aqueles que os
vivos realizaram com mais satisfação que enfado: o relojoeiro, no meio de todos
os relógios parados da sua oficina, encosta uma orelha ressequida a um relógio
de pêndulo sem corda; um barbeiro ensaboa com o pincel seco o osso das bochechas
de um actor enquanto este estuda o papel fixando o guião com as órbitas vazias;
uma rapariga de caveira sorridente ordenha uma carcaça de bezerra». In
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003,
ISBN 972-695-374-X.
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