«(…) Ora, a relação entre
espírito e natureza sofreu uma radical transformação com a passagem do mundo
antigo para o moderno. Antes, os gregos uniam-se numa razão objectiva no
interior do Cosmo. Como ressalta Hegel, esta relação passou, na modernidade, a
se caracterizar essencialmente pela duplicação da realidade, tornando-se esta,
de um lado, ideia subjectiva e, de outro, o substancial. Ora,
essa cisão reflectiu também na contraposição entre a subjectividade e a objectividade,
ou, ainda, entre o pensamento e o ser e, por fim, entre o próprio espírito e a
natureza. Com isto, ocorreu uma mudança fundamental no conceito de Natureza,
com a tematização da subjectividade, algo diluído na antiguidade, como
princípio agora de uma autoconsciência. Hegel caracteriza essa transição como
uma grande navegação, uma descoberta de um continente desconhecido, no qual o
homem, depois de transpor o mar
turbulento de seus pensamentos, chega, enfim, e pode dizer: terra!.
Assim, tal pensamento chega à sua autoconsciência, enquanto cogito em
Descartes. Para Hegel: com Descartes
começa, com efeito, verdadeiramente, a cultura dos tempos modernos, o
pensamento da moderna filosofia, depois de haver marchado durante largo tempo
pelos caminhos anteriores. Com essa nova configuração da racionalidade,
todo o conhecimento humano sofreu uma alteração fundamental: o homem não seria
um espectador passivo do Cosmo, como outrora, porém detentor, doador e
ordenador do sentido do mundo. A contemplação deu lugar à acção investigativa
da natureza, em que esta deixa de ter uma ordem própria, passando a ser réu no tribunal
da razão. A razão julga sobre o mérito da verdade do conhecimento acerca
da natureza, se os modelos do nosso entendimento são ou não adequados para a
representação desta, o que coloca a ideia de um domínio cada vez mais eficaz
sobre ela. A ideia de uma tal racionalização segue o desenvolvimento de uma
questão que perpassa toda a modernidade (dos empiristas aos racionalistas, dos
realistas aos idealistas), qual seja o facto de que compreenderam (Galileu e Stahl) que a razão só discerne o que ela
produz segundo os seus projectos. Desta maneira, os modernos constituem a sua
distinção em relação aos antigos, como vai afirmar Kant: até agora se supôs que todo o nosso
conhecimento se tinha que se regular pelos objectos, mas, ao invés
disso, tente-se ver uma vez se não
progrediremos melhor nas tarefas da Metafísica, admitindo que os objectos têm
que se regular pelo nosso conhecimento.
Tal
posição foi denominada por Kant de revolução copernicana do pensar, em
que fica evidente que o mundo não é e não pode ser algo independente do sujeito
cognoscente, mas determinado e condicionado por este, tornando mais explícito
que a razão só conhece aquilo que põe, e a razão moderna põe o mundo como seu
objecto. Essa tendência não é de forma alguma algo isolado a Kant. Pelo
contrário, ele é a expressão máxima dessa posição moderna do sujeito
cognoscente na modernidade. As ciências modernas tiveram papel importante nessa
transformação da perspectiva cosmológica para a antropológica (epistémica), que
ocorreu com a mudança conceitual do ponto de vista acerca da natureza.
Para os antigos, a natureza tinha o sentido de um todo qualitativamente
organizado de forma objectiva, por uma razão que o perpassava; destarte, só
restaria ao homem certa atividade contemplativa. Já para os modernos, essa
natureza constitui-se em inteligível com base em sua quantificação matemática.
A própria ideia de um Cosmo limitado, pois o belo, para os gregos, é o que possui
limites, dá lugar ao infinito quantitativo do Universo. Assim, a própria ideia
de Cosmo ou Universo se transforma. Se há algo a ser investigado e extraído de
seu interior, só pode ser através da matemática. Com isso, tornou-se necessária
a elaboração de um método que permitisse tal investigação; tal método foi
denominado de procedimental, por estabelecer procedimentos para
validação das investigações, ou experimental, por ter na experiência a sua
fonte de conteúdo e validação, e as ciências que o utilizam, de ciências
experimentais. O método procedimental das ciências experimentais precisava de
uma sustentação teórica para a conceitualização de tal posição frente ao seu
conhecimento sobre a natureza. A filosofia fundamentou tal procedimento no seu
plano metafísico e teórico e buscou, ainda, pesquisar se a investigação dá
conta ou não do seu objecto, que é a natureza. A filosofia moderna
constitui-se, deste modo, enquanto uma teoria do conhecimento ou ainda epistemologia».
In
Alexandre Moura Barbosa, Ciência e Experiência, Ensaio sobre a Fenomenologia do
espírito de Hegel, Editora Universitária, Edipucrs, Porto Alegre, 2010, ISBN
978-85-7430-970-5.
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