A história faz-se (ou da prática actual dos profissionais de história).
Depois de Abril de 1974
(…) Historiadores oficiais e oficiosos, e também alguns estrangeirados
do segundo grupo, foram apanhados de surpresa pela revolução. E enquanto alguns
dos primeiros se apressaram a embandeirar em Marx e Lénine comprando
apressadamente os primeiros caixotes, alguns dos estrangeirados
encararam com o maior cepticismo os acontecimentos revolucionários. Ainda com o
socialismo nos lábios, pareceu-lhes Abril uma coisa informe, inacreditável.
Quanto a alguns daqueles que recorreram apressadamente a São Marx fecham agora
discretamente os caixotes e caracterizam o período libertador como um período
de ausência de liberdades. Objectividade
ou má consciência? Uma coisa é certa: todos fomos afectados positiva e
negativamente pelo tufão de Abril. A vida e o tumulto entraram pelas portas
escancaradas da Universidade. Todos os olhos se voltaram para as regiões
anteriormente interditas, épocas moderna, sobretudo a contemporânea, e todo o
mundo das ciências sociais. A História tentou compreender o que se passava em
Portugal nos campos, nas fábricas, nas praças, nos países libertados de Além-Mar.
Na torrente do movimento seguiam oportunistas, desencadearam-se abusos,
rebentaram as estruturas administrativas, mas o sentido do movimento provocou
alterações decisivas e marcou profundamente toda uma juventude que se orgulha
de pertencer à geração de Abril.
Aliás, com as qualidades e defeitos inerentes, foram os estudantes que
lideraram o processo de renovação. Reestruturaram os seus próprios cursos bem
melhor do que o haveriam de fazer, no remanso e segredo dos gabinetes, alguns
doutores de alto gabarito. Mas as críticas e a reacção organizadas não se fizeram
esperar. Que em vez de estudo, o tempo decorria entre folclore e assembleias
gerais, que se intimidavam professores e alunos, que se contratavam
incompetentes, que o conteúdo do ensino não passava de Marx com Marx. Assente
muito já do tumulto e ignorando a polémica, com base na experiência de quatro
anos no Departamento de História da Faculdade de Letras de Lisboa, creio que poderemos
sintetizar em quatro principais as alterações e conquistas ocorridas na
Universidade. Em primeiro lugar, assistimos ao alargar dos tais limites legais,
que hoje coincidem por vezes com os limites naturais, isto é, com os limites
que se abrem objectiva e materialmente aos diferentes grupos sociais da nossa
época. O contemporâneo assusta mas já não se reprime; não há zonas proibidas do
saber. A própria linguagem se ressentiu desta abertura e ganhou maior clareza e
virilidade. O movimento social é o grande responsável por este horizonte
alargado mas, para lá de muita improvisação e amadorismo, e dos valores que ficaram
do antigamente, alguma da qualidade atingida deve-se muito ao sangue novo que entrou
na Universidade, designadamente ao do tal grupo não-oficial de investigadores, de que falámos atrás. Os
quadros, em ciência, não se improvisam. Uma segunda conquista
fundamental foi a das novas relações docente-discente. O professor dificilmente
será hoje o polícia das consciências. O seu formidável poder, o de abrir ou
fechar as portas da sociedade, não é já o fruto de um acto tantas vezes discricionário.
Ao arbítrio, à selecção ideológica que culminava a de classe já praticada nos
outros graus de ensino, iniciaram-se relações de trabalho criador em comum,
incentivando-se, nos melhores casos, o trabalho de grupo sem menosprezo pelo
trabalho individual. A avaliação, isto é, o momento alto do tal poder social
que sempre opõe o professor aos alunos, deixou de ser feita nas costas destes.
Claro que se manifestaram conhecidos oportunismos: professores que tentando segurar
os seus alunos ou por fraqueza os adulavam com altas classificações; alunos que
viram nas novas relações oportunidades para imporem classificações favoráveis e
evitar as reprovações. Mas não se pode ignorar que o trabalho de avaliação,
dita contínua, se processou em condições extremamente difíceis, em particular as
provocadas pela explosão escolar.
Uma terceira conquista, e fundamental, está em se terem criado
possibilidades de fazer História. Não se trata apenas de ensinar que a História
se faz, que é um produto dos homens. Trata-se de pôr ao alcance dos estudantes instrumentos
e técnicas que lhes permitam tentar e descobrir como se faz a História. Um
curso universitário que tenha a História como seu objecto e não a ensine a fazer,
renega a sua função científica. Não se pretende que todos os alunos venham a
ser cientistas em Letras ou até que venham todos a abraçar a docência. Trata-se
de exigir que os indivíduos que recebem o diploma de licenciados em História
possuam o conhecimento teórico e prático das técnicas e problemas que tal
investigação hoje levanta. Mesmo que sejam inábeis, mesmo que o material não se
ajeite bem nas suas mãos. Não há outra forma de aprender senão errando e praticando.
A menos que se queira voltar aos robots,
aos reprodutores surdos e cegos de mitos incompreensíveis, mesmo absurdos
(portanto verdadeiros...) e se
recuse mobilizar toda a capacidade e entusiasmo criador dos estudantes, em
plena expansão nestes tais últimos anos ditos de tumulto». In António Borges Coelho,
Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção
Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.
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