Uma
inocente conhece o mundo. 1355
«(…) Meu traje, um vestido
azul-celeste longo, feito de escarlate, a lã mais fina que há, e uma sobreveste
verde, fora confeccionado para mim a partir do tecido das últimas roupas
descartadas por minha mãe. Diferentemente de suas instruções costumeiras para que
meus vestidos fossem rectos, ela determinou que a criada ajustasse este aos
meus seios, que despontavam à época, e à minha cintura delgada. As mãos de Nan
tremiam enquanto ela me vestia, auxiliada por outra criada, tão silenciosa
quanto ela. Sem dúvida, ambas desejavam, temerosas, que minha mãe julgasse
satisfatório o resultado, e que, portanto, não encontrasse motivo para explodir
num ataque de fúria. Embora eu me mantivesse sentada imóvel enquanto Nan
escovava os meus cabelos, a ansiedade me tornava irrequieta. Distraía-me
pensando em qual seria o próspero comerciante que meu pai escolheria para mim.
Sabia que ele não ficaria satisfeito com o homem mais bonito e de melhor temperamento,
pois o objectivo de meu casamento era a aliança entre a nossa próspera família
e uma outra, de preferência ainda mais próspera. Eu tampouco poderia esperar
que o escolhido fosse alguém da minha idade. Por algum tempo eu pensara que
Geoffrey, meu melhor amigo, pudesse ser esse alguém; no entanto, pouco antes
seus pais o haviam mandado para uma casa nobre, onde ele serviria como pajem.
Vendo meu desapontamento, meu pai lembrara-me que, embora os Chaucer fossem suficientemente
ricos e respeitáveis, o filho deles tinha apenas 13 anos. Antes de casar-se, um
jovem deve ter uma ocupação ou uma herança que lhe permita sustentar o seu lar,
e Geoffrey não tinha nenhuma das duas. O meu pensamento desviou-se dessas
preocupações quando Nan pediu que eu me virasse, a fim de que ela pudesse
conferir se estava tudo devidamente abotoado e arrumado. Nan bateu palmas enquanto
eu girava, mas, quando voltei a ficar de frente para ela, vi que chorava. Nan,
o que há? Até o fim do dia tu terás uma dúzia de propostas de matrimónio e já
estarás casada no Natal, lamentou ela. Então eu não te verei mais. Tu esquecerás
a tua velha Nan. Abracei-a tão apertado que ela soltou um gritinho e me afastou
de si. Eu te amo demais para esquecer-te, falei, do fundo do coração. Tu vais
arruinar todo o meu trabalho, protestou Nan, mas percebi que ela tinha ficado
bem contente. Quando entrei no saguão, meu irmão John parou de andar de um lado
para o outro para me ver e, em seguida, baixou o olhar, inclinando de leve a
cabeça como se procurasse qualquer coisa no chão. O que foi?, perguntei. Ele
tornou a erguer o olhar, primeiro para o meu rosto, agora ruborizado, depois
para o meu longo pescoço desnudo. Vestida assim, quase não te reconheço,
murmurou ele, voltando-se para o meu pai, que se juntara a nós. Pelo amor de
Deus, Alice, não mordas o lábio. Meu pai chamou-me de lado. Não há razão para
queixas. Hoje deves festejar a tua juventude e beleza, hã? Ele tomou a minha
mão, fez uma reverência, beijou-a e deu um passo para trás, para dar uma boa
olhada em mim. Minha filha, falou entre os dentes. Não sorriu, mas também não
demonstrou desagrado. Estou bonita, pai?, perguntei, confundida pela sua
expressão. Sim, claro! Tua mãe ficará orgulhosa de ti hoje. Todos nós
ficaremos. Agora o senhor poderá dizer-me quem estará observando-me mais
atentamente enquanto eu fizer as minhas orações hoje. Sei que o senhor
conversou com alguém. Ele tirou o chapéu e esfregou a testa, suando apesar do
frio que fazia no saguão. Tu o verás logo logo, Alice. Caminha com humildade e
sorri com doçura para quem te cumprimentar. Será ainda melhor se houver
pretendentes de reserva, não? Ele levantou a mão para afagar o meu ombro, como
era seu costume, mas de repente corrigiu-se, deixando-a cair. Percebi que,
assim como John, ele me achava diferente e, de algum modo, intocável. Eu sentia-me
febril, enjoada e desejava fugir.
Mas
minha mãe acabara de entrar no saguão, descendo do solário. Ela parou à porta
com tal ar de elegância e tamanha autoridade que me senti como fosse Mary,
minha irmã de 5 anos, descalça e encardida. Vem na minha direcção, ordenou
minha mãe. Assim o fiz, tremendo de medo sob seu pesado escrutínio. Vira-te. Obedeci
novamente, como se fosse uma boneca que ela manipulasse à distância. Ela
suspirou. Não temos tempo para lamentar. Não há remédio. Margery, por que dizes
isso? Alice está adorável, protestou meu pai. Tu só poderias pensar desse modo,
respondeu minha mãe, dirigindo-lhe um olhar intimidante. A minha única
esperança é de que a presa escolhida por ti pense o mesmo. Seria possível que
ela estivesse no escuro, assim como eu, no que dizia respeito à escolha de meu pai?
Venham, John, Will. Ela suspirou diante do cabelo sujo de meu irmão mais novo. Onde
está a Nan? Ainda não acabou de arrumar Mary? Minha mãe não tornou a olhar para
mim. Continuei ali de pé no saguão, constrangida e sentindo-me descartada. Foi
Nan, a querida Nan, que salvou o meu dia. Colocando a mão rechonchuda de Mary
sobre a minha, ela pediu: Diz à tua irmã aquilo que me disseste Mary. Assim que
olhei nos grandes olhos da minha irmãzinha, compreendi que o que eu via ali era
amor, admiração, tudo aquilo que eu desejara ver nos olhos de meus pais e de
John. Tu és tão bonita, sentenciou Mary. Quero ser igual a ti quando eu
crescer. Tentada a abaixar-me para apertar aquela querida criança contra o meu
peito, forcei-me a resignar-me a um beijinho na sua face momentaneamente limpa
e a um leve aperto de mão. Vais comigo à igreja, minha lady Mary?, perguntei, o
meu coração desmanchando-se ao ver o encantamento nos seus olhos. Tu está linda
como uma aurora na Primavera, sussurrou Nan. A mãe não gosta de ser ofuscada, e
o pai deu-se conta de que está prestes a deixar a casa. Não os julgue pelos
seus sentimentos tolos, Alice». In Emma Campion, A Amante do Rei, 2009,
tradução de Patrícia Cardoso, Editora Record, 2013, ISBN 978-850-140-467-1.
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